A Cena Velada

O que as artes não dizem quando encenam a história oficial

Por ocasião dos 50 anos da independência de Moçambique, assisti à gala do Grupo Nacional de Música e Dança, figura emblemática da nossa memória cultural. A celebração evocava com nostalgia os grandes momentos da moçambicanidade vivida através das danças, ritmos e línguas que historicamente deram forma à alma plural de Moçambique. No entanto, algo profundo se perdeu no gesto estético: a crítica.

A representação da história nacional foi moldada a partir das figuras presidenciais – Mondlane, Machel, Chissano, Guebuza, Nyusi – como se a nação se resumisse ao desfile de seus dirigentes. Era como regressar a uma historiografia anterior aos Annales, que privilegiava os grandes homens, reis e imperadores, esquecendo as massas, os gestos quotidianos, os gritos anónimos da história subterrânea.

A descolonização da mente é o maior dos combates. 
E ela começa na linguagem com que nomeamos o mundo.

Ngũgĩ wa Thiong’o, Decolonising the Mind

Contudo, a arte em Moçambique não nasceu para glorificar o poder. Ela precedeu o próprio pensamento político revolucionário. Eduardo Mondlane, no seu livro fundador "Lutar por Moçambique", reconhecia a dimensão profética das artes ao citar José Craveirinha e Noémia de Sousa como figuras essenciais da denúncia ao colonialismo. Com Malangatana e Chissano, na pintura e escultura, o gesto estético foi também gesto insurgente.

Craveirinha, ao dizer "eu pertenço a um país que ainda não existe", não fazia um lamento: fazia uma profecia. Era um poeta que via antes do tempo, como fazem os verdadeiros artistas. A escultura que transforma armas em arte, o teatro do Tchova Xitaduma, a literatura do movimento Charrua, o Move Art na pintura – todos são expressões de uma arte que não apenas narra, mas anuncia. 

Assistimos hoje, porém, a uma inflexão regressiva. A peça encenada na gala dos 50 anos parecia um produto de propaganda, quase uma encomenda estética. Nenhuma tensão, nenhum conflito, nenhuma abertura crítica. Era um elogio circular, fechado, impermeável ao dissenso. Uma arte orgânica – no sentido gramsciano – a serviço da narrativa oficial.

Em filosofia, arte pertence à epistemologia: é forma de saber, modo de ver, gesto de dizer o que ainda não foi dito. É por isso que uma arte que abdica da crítica trai a sua função. A crítica – no sentido grego, krinein – é discernimento, separação, rasgar o véu. Uma peça que reconstrói a história com base numa cronologia laudatória reduz o povo a plateia muda.

A arte é o único lugar onde os mortos e os vivos dançam juntos, onde o mundo se pode recomeçar sem pedir autorização.

Sony Labou Tansi, L'État honteux

Escrevi outrora sobre os "momentos filosóficos". O momento grego, com Platão e Aristóteles. O momento alemão, com Hegel, Fichte, Schelling. O momento francês, com Deleuze e Guattari. E interrogava-me se seria já possível pensar um momento moçambicano. Minha conclusão era: ainda não. O momento moçambicano seria aquele em que se criasse um olhar, uma epistemologia própria, com as artes como antecipadoras do real.

Mas esta gala vem mostrar que não só ainda não vivemos o momento moçambicano, como corremos o risco de o impedir. Ao renunciar à crítica, a arte regride. Regride à Poesia de Combate, à retórica do heroísmo, ao panfleto estético. Mas as artes não podem ser apenas celebração do que foi: têm de ser também interrogação sobre o que somos e visão do que podemos ser.

Celebrating the Strength and Resilience of Mozambique's Fisherwomen

Falta-nos uma crítica de arte em Moçambique. Uma crítica que resgate a função estética como pensamento, como abertura, como provocação. A arte não está para consolar, mas para desinstalar. Como dizia Adorno: “Toda arte é uma ferida aberta no real”. Precisamos de feridas assim – que não infeccionem, mas que façam respirar.
A função das artes moçambicanas não pode ser a de adornar o poder, mas de trazer à luz o que o poder não diz. Como dizia Fabien Eboussi Boulaga, a missão do pensamento africano não é repetir fórmulas dadas, mas “elaborar uma fala capaz de nomear o nosso mundo e os nossos abismos”. A crítica é, por isso, o exercício mais nobre da estética: aquela que não adorna o rei, mas desvela o povo.

O momento moçambicano ainda não é, mas ele pulsa nos gestos de resistência estética, nos fragmentos da escultura que devolvem humanidade ao ferro da guerra. Como dizia Valentin-Yves Mudimbe, “trata-se de desorganizar o conhecido para reencontrar o sentido num outro lugar”. As artes, quando verdadeiras, não ilustram o passado — elas insinuam um mundo por vir.

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