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A Identidade Ferida
Correspondência sobre Juventude, Nação e Responsabilidade
Eu nasci nos finais dos anos 70, vi um pouco Samora Machel, ouvi várias vezes em vida, através da rádio. Eu me lembro, havia nos moçambicanos um espírito patriótico, isto é nosso, temos de cuidar, preservar e manter. Havia um respeito significativo pela Pátria, obrigatório ou não, havia e justificava-se.
O moçambicano sabia que o era e tinha orgulho. Ninguém lutava sozinho, porque ninguém vivia sozinho. Ninguém tinha algo que precisava proteger, porque aqueles que não o tinham podiam arrancá-lo. Apenas sabiam que eram moçambicanos e disso se orgulhavam.
Desde os meados de 90, tenho visto uma corrida sem freios em busca da riqueza. E até tirado exactamente de quem não tem. Depois de 2000, até às elites matam-se físico e moralmente, mostrando a juventude que o caminho da felicidade é ter, é riqueza.
Agora que há barões nisto, a passagem é estreita e ninguém quer passar por ela. Então? Restou roubo, burla, assassinato e engano para se obter riqueza a todo custo. E na verdade não importa de quem se rouba, se engana, se mata. Pois está juventude não possui identidade. Não tem certeza de que é moçambicana.
Há falta de indentidade? Talvez não falta, mas crise dela. Vê-se muitas vezes, jovens procuram aparentar a um americano, brasileiro, europeu. Conheço muitos afecionados de FC Barcelona, mas não sabem quais são as cores do CD Maxaquene. De viva voz dizem, eu não perco tempo com esse Ferroviário.
E mais podia dizer. Diálogo Nacional? Condicionado? Quem está a conduzi-lo? Já se viu a História dos vencidos se há aqueles que se dizem sempre vencedores?
Obrigado Professor por mais uma reflexão.
Caro Gimo,
O que descreves é uma mutação antropológica: da República ao Mercado
Tu viveste - e descreves com precisão - o que poderíamos chamar, usando linguagem de filosofia política, de passagem da “comunidade republicana” para a “sociedade de acumulação”.
Nos anos de Samora Machel, independentemente das falhas, excessos ou contradições do regime, havia algo que não pode ser negado:
Havia República.
Havia sentido de pertencimento comum.
Havia ética da sobrevivência partilhada.
Havia orgulho de ser moçambicano.
O cidadão não era uma ilha.
O pobre não era descartável.
O país não era um supermercado.
A partir dos anos 90, com o desmantelamento do modelo socialista, com a entrada violenta da economia neoliberal, com o colapso de valores herdados da luta, Moçambique viveu o que Franz Hinkelammert chamou de: “A absolutização do mercado que devora a própria sociedade.”
A crise moral que vês nos jovens - roubo, burla, culto da riqueza, violência - não é apenas “culpa deles”. É consequência de uma transformação profunda que varreu o país:
O ter substituiu o ser.
O indivíduo substituiu a comunidade.
O sucesso substituiu o patriotismo.
O dinheiro substituiu a honra.
A juventude copia americanos, brasileiros ou europeus porque perdeu referências internas.
E perdem-se referências internas quando os adultos que deveriam ser referência as traíram.
O que chamas de crise de identidade é, na verdade, crise de espelho.
A tua frase é brutal e verdadeira: “A juventude não possui identidade. Não tem certeza do que é a identidade moçambicana.”
Mas quero acrescentar algo filosófico aqui: A juventude não sabe quem é porque não vê adultos que saibam quem são.
Os mais velhos rasgaram o contrato moral da nação.
Hoje, o jovem vê: elites que matam, políticos que roubam, governantes que acumulam, partidos que vivem de narrativas vazias, um Estado que protege interesses e não sonhos.
Perante isso, só pode concluir: “Moçambique é um lugar para sobreviver, não para pertencer.” Assim nasce a crise de identidade.
Identidade não se ensina com bandeiras; ensina-se pelo exemplo.
A tua pergunta final é a mais difícil e mais justa: «Diálogo Nacional? Condicionado? Há vencedores que mandam sempre?»
Sim, compreendo o teu ceticismo. Compreendo-o profundamente. A história dos vencidos raramente tem microfone. Moçambique habituou-se a narrativas únicas - do partido único, da verdade única, do herói único, do vencedor eterno.
Mas deixa-me responder com rigor filosófico e esperança ativa (no sentido de Ernst Bloch):
Um diálogo nacional nunca começa perfeito.
Começa sempre condicionado.
Começa sempre dominado por alguns.
Começa sempre desconfiado pelos outros.
Mas a força de um diálogo não está nas mãos de quem o convoca. Está nas mãos de quem o transforma.
Se o povo entrar, se falar, se escrever, se exigir, se participar, o diálogo deixa de ser “condicionado” e torna-se apropriado.
O destino não é escrito apenas pelos que mandam. É escrito por quem não desiste de se fazer ouvir.
E aqui está a verdade central: O diálogo nacional só se torna verdadeiro quando os moçambicanos o tornam inevitável.
Nenhum poder aguenta a força de um povo que reencontra a sua voz.
A tua memória de infância descreve exatamente o que falta hoje:
orgulho,
pertença,
comunidade moral.
O que Samora Machel conseguiu, com todos os seus limites, foi criar um imaginário de comunidade. Essa é a alma que hoje falta.
E aqui está o ponto filosófico mais importante que quero deixar-te:
O que falta à juventude não é disciplina - é sonho.
O que falta ao país não é ordem - é sentido.
Quando o país voltar a ser espaço de propósito comum, quando a pátria voltar a ser casa e não deserto, quando os jovens voltarem a sentir que Moçambique lhes oferece futuro, a identidade renascerá.
E agora, a resposta mais difícil, mas mais honesta:
Sim, perdemo-nos.
Mas podemos nos reencontrar.
A tua carta é preciosa porque nomeia o ponto de ruptura:
deixámos a fraternidade;
abraçámos a acumulação;
destruímos a confiança;
deixámos os jovens sem herança moral.
Mas ainda há tempo - pouco, mas há. A reconstrução não começa no Parlamento, nem nos partidos.
Começa na conversa séria, como esta.
Começa na palavra verdadeira, sem medo e sem ódio.
Começa quando homens e mulheres como tu dizem: “Isto não pode continuar.”
E aqui está a chave, Gimo: A identidade volta quando o povo volta a acreditar que o país é seu.
Nenhum processo de reconciliação funciona se não restaurar esta fé.
Para terminar, respondo-te com uma frase de Jorge Rebelo, que é também a resposta que Moçambique precisa ouvir:
“Onde nos perdemos?”
Perdemo-nos quando deixámos de ser nós.
Perdemo-nos quando deixámos de acreditar que Moçambique era maior do que cada um de nós.
Perdemo-nos quando deixámos de ser comunidade.
Mas Rebelo também nos deixou o remédio:
“As nossas causas devem ser puras e justas - e a pureza e a justiça devem existir dentro de nós.”
É por aí que se recomeça.
Com estima, respeito e esperança crítica,
Severino Ngoenha
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