A Inominável Ordem do Mundo

Da Hypnocracy à Relacracia

Citando Deleuze, o ensaísta Andrea Colamedici parte de uma das proposições mais exigentes da filosofia: "a filosofia é a arte de criar conceitos." Esta criação, no entanto, não pode ser um gesto fútil ou arbitrário. Os conceitos não são etiquetas ocas: são armas contra a confusão do mundo, são respostas críticas às metamorfoses do real. Mas que fazer quando os acontecimentos ultrapassam as grelhas conceituais que herdámos? Quando a linguagem se esgota diante da monstruosidade da história em curso?

Vivemos uma era de dissonância conceitual. Os instrumentos analíticos herdados da tradição liberal, marxista ou mesmo existencial parecem incapazes de capturar o novo real político. Os grandes quadros conceituais herdados do século XX — como liberalismo, autoritarismo, multilateralismo, fascismo, socialismo — parecem desajustados.

Black and white photo of security cameras on government building.

Vivemos um tempo em que os conceitos da ciência política e da filosofia tornaram-se preguiçosos. Termos como “populismo”, “fascismo”, “autoritarismo”, “iliberalismo” ou “supremacismo” são usados para descrever realidades que os excedem. O caso do atual presidente norte-americano é paradigmático. Como nomeá-lo? Como conceber uma figura que não apenas reconfigura a ordem global, mas desfigura os próprios instrumentos de pensamento que usávamos para interpretá-la?

Como  compreender um poder que se apresenta como democrático, mas opera fora de qualquer código institucional conhecido; que invoca a liberdade, mas pratica a coerção e a humilhação diplomática; que despreza o saber, mas exige obediência total à sua narrativa?

Trump ultrapassa o político, o diplomático e até o simbólico. Ele transforma o ato de governar num espetáculo narcísico, obsceno e profundamente eficaz. No plano internacional, reverte alianças históricas, transforma inimigos em aliados e aliados em tributários. Instaura uma política de taxação global com um único beneficiário: os Estados Unidos. À China, impõe um bloqueio económico. À Europa, impõe tarifas. Aos aliados, desconfiança. Aos migrantes pobres, expulsão. Aos brancos da África do Sul, acolhimento como se fossem refugiados raciais.

A ciência política moderna assenta em categorias herdadas do liberalismo (Estado de direito, separação de poderes, multilateralismo), do marxismo (luta de classes, dominação imperial) e do realismo (interesse nacional, equilíbrio de poderes). Mas figuras como Trump destroem esses marcos. Elas agem como “atores-espetáculo”, criando realidades simultâneas e contraditórias. Não obedecem à lógica da coerência ideológica, mas ao efeito performativo do poder .

Esta figura não se inscreve no “normal” político. Ela opera numa lógica de distorção permanente. Não se trata apenas de cinismo ou estratégia. Trata-se de uma nova forma de poder que dispensa mediações institucionais, simbólicas, morais. É o poder direto, nu, narcísico e eficaz — uma espécie de neo-cesarismo global, sem toga, sem império, mas com redes sociais e taxas aduaneiras.

Não estamos apenas numa era “pós-política” ou “pós-histórica”. Assistimos a uma mutação mais funda: o advento da pós-diplomacia. Quando o chefe de Estado da maior potência do mundo ridiculariza publicamente outros líderes, interfere em universidades como Harvard, e trata o mundo como um parque de diversões tarifárias, já não estamos na política, mas na sua paródia eficaz. 

Trump não é apenas populista. Ele é uma entidade simbiótica com os media, um algoritmo emocional do ressentimento branco, um produtor de caos estratégico. O conceito de chefe de Estado perde aqui o seu sentido tradicional. Falamos de uma entidade que faz política como um “influencer apocalíptico”. A ciência política clássica, ao procurar estabilidade e racionalidade no poder, é incapaz de pensar o poder como delírio organizado — é por isso que os seus conceitos colapsam. Então como nomear isto?

Andrea Colamedici (Professor de prompt thinking), em diálogo com a inteligência artificial, inventa a palavra Hypnocracy (Janeiro 2025) para tentar dar conta de um poder que hipnotiza, desinforma e manipula. O termo Hypnocracy combina “hipnose” e “cracia” (poder), descrevendo um regime em que o poder se exerce pela fascinação, manipulação simbólica e anestesia das consciências. 

O conceito é poderoso: ele diz algo que sentimos mas não sabemos descrever. Diz a nossa fascinação, o nosso entorpecimento coletivo, a paralisia crítica diante do espetáculo político. Diz a nossa passividade informada, nossa lucidez impotente, nossa indignação anestesiada.

E a resposta foi imediata: jornalistas, políticos e até instituições (chancelarias) começaram a utilizar o termo. Isto não é apenas um triunfo retórico. É um sintoma. A invenção conceitual foi aceite porque nomeia, ainda que provisoriamente, algo inominável. E aqui a filosofia deve intervir — não para aceitar este conceito como definitivo, mas para reconhecê-lo como convite ao trabalho conceitual mais profundo.

A invenção de um conceito em filosofia — como afirma Deleuze— não é uma operação arbitrária nem puramente estética. Um conceito não é uma etiqueta; ele é uma ferramenta que permite pensar o impensado, ou o ainda não nomeado. O conceito não nasce da fantasia, mas da urgência da experiência. O conceito filosófico é o que emerge quando a linguagem e os sistemas de pensamento existentes se revelam insuficientes para captar a singularidade de uma época, de um acontecimento, ou de uma figura histórica como Trump.

Inventar um conceito, como Hypnocracy, ou qualquer outro que venhamos a criar, é abrir um novo espaço de visibilidade e inteligibilidade, um espaço onde possamos finalmente dizer: é isto que está a acontecer. No plano diagnóstico, ele permite-nos nomear um fenómeno novo: o surgimento de regimes de poder que não se impõem pela violência direta ou pela autoridade clássica, mas pela manipulação do imaginário, pela saturação de afetos, pelo espetáculo mediático. O governante hipnocrático não governa apenas com decretos, mas com imagens, escândalos, gestos simbólicos, ambivalência permanente. Ele confunde para dominar. E ao fazê-lo, torna ineficaz a crítica tradicional baseada na lógica ou na razão argumentativa.

Glow | Blender 3D

No plano político, um conceito assim é uma ferramenta de mobilização e resistência. Ele permite às sociedades, aos movimentos sociais, às comunidades intelectuais, dizer: “isto tem um nome”. E ao nomeá-lo, restituímos-lhe contorno, retiramos-lhe o véu da banalidade e da normalização. É, portanto, uma operação que devolve à crítica o seu poder de desmascarar e de propor.

Mas o mais importante é que, ao cunhar um novo conceito — como um novo nome para Trump, ou para a época que ele inaugura — produzimos um gesto filosófico fundador, um gesto que devolve à filosofia a sua função originária: dar sentido ao mundo, mesmo quando o mundo parece ter perdido o sentido.

 Será que o conceito de Hypnocracy é suficiente para capturar a totalidade do fenómeno Trump ou devemos pensar num conceito que articule também a dimensão pós-verdade, teatralidade política e interesse económico imperial? O conceito descreve bem o mecanismo de fascínio e distração pelo qual certos líderes exercem poder — não pelo argumento, nem pela força, mas por uma espécie de hipnose coletiva através dos meios de comunicação, da linguagem simbólica e da saturação afetiva. 

Mas o conceito padece de uma limitação: é descritivo e não propositivo. Ele diagnostica, mas não oferece caminhos de regeneração. Além disso, carece de uma ancoragem ética e ontológica. Por isso, Hypnocracy é um ponto de partida, não um ponto de chegada. Precisamos de um conceito mais robusto, mais profundamente ancorado num ethos de resistência e re-existência.

Isto chama em causa a filosofia africana, que não pode continuar a ser um eco surdo das agonias europeias. O mundo que se desenha afeta diretamente o continente africano: cortes da USAID, exclusão dos circuitos internacionais, manipulação de aliados como a África do Sul, uso instrumental da miséria e da esperança africana. Não é apenas uma guerra de conceitos, é uma guerra de mundos.

A resposta africana não pode ser a repetição dos termos ocidentais. Ela deve criar. Nomear. Propor. Não por orgulho cultural, mas por necessidade existencial. A sua missão não é acompanhar, imitar ou legitimar os conceitos fabricados nas academias ocidentais, mas participar na criação de uma nova gramática do mundo. Isso não significa rejeitar o diálogo com a filosofia global, mas assumir que há uma experiência histórica, política e ontológica africana que deve ser matriz de pensamento e não apenas objeto de análise.

A especificidade da filosofia africana neste contexto reside, em primeiro lugar, na sua proximidade radical com o concreto, com a vida em situações de opressão estrutural, colonialidade permanente, desumanização quotidiana. Mas ela carrega também a potência de uma antropologia filosófica alternativa, baseada na intersubjetividade como critério da política, da relacionalidade como base da justiça, da partilha como ética do poder;  a ideia de que a humanidade é uma construção coletiva, não uma imposição imperial.

A tradição filosófica africana, sobretudo aquela ancorada na ideia de relacionalidade (eu sou porque nós somos) oferece uma gramática outra, não centrada na dominação ou no espetáculo, mas na comunhão e no sentido partilhado. Esta tradição reconhece que o sujeito só se realiza na comunidade e que o poder é autêntico se for serviço, não comando.

Hippos cooling off in the dam

A filosofia africana não pode apenas “responder” à modernidade ocidental. Ela deve gerar conceitos originais com raízes próprias. A “hipnocracia” e a “crinocracia” podem ser desmontadas por um novo paradigma que recupera o koinos logos do viver juntos, não por nostalgia, mas como proposta crítica e criadora.

É esta filosofia que pode interrogar Trump e o sistema que o produz com um olhar outro, não apenas para resistir ao que ele representa, mas para propor um outro mundo possível, que não seja regido pela lógica do lucro, da guerra e da supremacia unilateral.

A Hypnocracy é um sintoma global, mas a resposta africana deve propor mais do que um conceito descritivo. Ela deve oferecer uma alternativa ontológica. Um modo de estar-no-mundo que resista à lógica unilateral da força, à economia do medo e à diplomacia da vergonha. Talvez possamos nomear esta proposta africana como relacracia — o governo fundado na relação, na reciprocidade, na dignidade partilhada.

Vivemos um tempo em que a linguagem da política se esgotou, não apenas nas suas formas de nomeação, mas sobretudo na sua capacidade de mediação entre os povos e as formas de viver em comum. Da democracia liberal às oligarquias tecnocráticas, passando pelos autoritarismos travestidos de nacionalismos, o nosso tempo testemunha a agonia de um vocabulário político que já não representa nem inspira.

Vivemos tempos inomináveis. Mas é exatamente nesses tempos que a filosofia (africana) mostra o seu dever. Nomear é resistir. Nomear é criar sentido. Nomear é dizer: este mundo não é inevitável, é construído. E porque é construído, pode ser reconstruído.

Entre a Hypnocracy do presente e a barbárie do futuro, a filosofia africana deve levantar a sua voz — não como eco, mas como fonte. Não como vítima, mas como visionária. Não como resposta tardia, mas como nomeadora de um novo tempo.

A filosofia africana pode intervir se assumir três gestos fundamentais: Auto-fundação epistémica: recusar a posição de periferia que apenas responde ao que vem do Ocidente. Isso exige que se reconheça como capaz de produzir conceitos universais a partir das suas experiências locais.

Tourists in Rijksmuseum, Amsterdam

Crítica e criação combinadas: se ela diagnosticar os mecanismos globais do poder (colonialismo, capitalismo, patriarcado, imperialismo cultural), não se limitar à denúncia, mas ousar criar outros nomes, outras imagens, outras narrativas.

Se ela se tornar-se um lugar de encontro — Hospitalidade epistémica — entre saberes plurais. A sua força não está em repetir, mas em transformar o universal a partir do singular africano.

Portanto, a intervenção filosófica africana não deve ser nem subalterna nem ressentida: deve ser criadora, exigente, e situada. Ela deve tornar-se produtora de conceitos, no sentido deleuziano, mas com uma ética do nós, com uma filosofia do poder que emerge da partilha da existência, do entrelaçamento das vulnerabilidades e saberes locais, e da autorregulação ética dos coletivos que se reconhecem como co-criadores do espaço comum. Uma gramática política fundada em valores como hospitalidade, cuidado e circularidade, em vez de competição, controle ou crescimento económico.

Ela é também uma proposta de descolonização do futuro: nomear o mundo desde África, com os nossos nomes, as nossas vozes, os nossos valores. Ela pode ser — se a tomarmos a sério — a nova filosofia política do mundo que vem…

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