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A Paz dos Bravos
Em Moçambique, onde as disputas ameaçam a estabilidade do país, a paz de bravos é urgente para desarmar a armadilha da fragmentação interna, da pilhagem de recursos e do colapso da convivência comum. A insistência em vitórias absolutas levará à destruição mútua. Uma Paz moçambicana só é possível com concessões mútuas e alianças pragmáticas, para preservar a paz e a unidade do pais.
O caos em que estamos mergulhados, parece ter a sua génese no último e atabalhoado processo eleitoral. No entanto, a realidade das demonstrações mostra que os problemas em causa transcendem as eleições e refletem uma crise mais ampla que questionam as estruturas profundas do contacto social que o Estado (volens, nolens) vem descumprindo nos últimos anos.
As reivindicações que subentendem e acompanham as manifestações tem um perfil multifacetado.
As manifestações desvelam um sentimento de desconfiança e descontentamento em relação às instituições eleitorais, mas os slogans que emergem nas estradas, mercados, escolas, hospitais (…) revelam algo ainda mais profundo. Por um lado, expressam um intenso nacionalismo, um apego emocional ao país - evidente nos hinos que provocam calafrios- e no orgulho em ser moçambicano. Por outro lado, mostram um clamor estrutural contra o elitismo do modelo atual de governação económica, em discrepância e aos antípodas com às aspirações de justiça e equidade dos cidadãos.
No actual status situationis, mesmo que os resultados das eleições fossem anunciados pelo Papa, pelo Secretario geral das Nações Unidas ou por Trump - e depois de uma auditoria forense - encoraríamos, na mesma, a um conflito civil com proporções imprevisíveis e perigosas para a estabilidade e integridade do pais. A proclamação dos resultados das eleições é um rastilho de uma bomba (político-social) já armadilha e pronta a explodir. A questão urgente é como desactivar a bomba; evitar/parar a guerra e buscar com, seriedade, soluções a crise do contracto social que nos apoquenta como sociedade.
O arrebentar da bomba nos expõe a riscos alarmantes de violência e anarquia com qual nenhum país pode viver -com cada um a fazer a lei como quer. A haitização do país - em parte já em curso -, em que gangues fazem leis nos bairros, povoações e distritos; a congolização, em que países estrangeiros intervêm militarmente no país; a libianização/iraquização (também já em curso) em que nos enredamos em conflitos internos, enquanto terceiros saqueiam (Cabo Delgado) os recursos ou, pior, a somalização (com os seus doze milhões de deslocados) que consiste na divisão do país.
Seria um anacronismo histórico tentar analisar fatos do presente com parâmetros e soluções do passado. Reduzir convulsões em curso as eleições, pensar que o problema se resolve com acomodações dos revoltosos - dar mais votos as oposições, acomodar as lideranças ou resolver a contenda com a força; seria um anacronismo histórico de quem não busca entender o âmago do problema em curso. As soluções adoptadas nas décadas de 1980 e 1990 não respondem às exigências de hoje, onde a sociedade civil busca mais participação, transparência e justiça social. Há gente que ainda pensa que há de haver pequenas revoltas e que depois vão se matar e fazer compromissos, como no passado. Esse anacronismo histórico resulta de uma análise superficial da natureza e da dimensão do problema do actual Moçambique. Hoje não se aceitam compromissos maquiavélicos, não é só Venâncio Mondlane - aliás, ele é fruto do descontentamento e frustração da juventude -, que já não aceita compromissos e conluios de elites que se fazem nas suas costas. A juventude quer estar presente, quer ter garantias, quer mudanças fundamentais e estruturais. Isso exige uma revisão completa das instituições, desde o sistema eleitoral até os mecanismos de governação, passando pela redistribuição de recursos e de reformas estruturais das Constituições. A juventude exige uma legitimidade das lideranças baseada na confiança e no consenso, construídas com transparência, coragem e a participação ativa de todos os segmentos da sociedade.
Não temos que exitar em denunciar o modus vivendi actual -embebido de promiscuidade, na nomeação e eleição dos juízes, dos parlamentares, dos reitores da s universidades, dos altos funcionários; a maneira como fazemos carreiras, a transparência de tudo aquilo que é a vida económica do nosso país, desde os salários a altos dirigentes, a maneira como se apropriam de bens públicos para questões individuais. Tudo isto tem que entrar num pacote de grandes discussões para ultrapassarmos o momento de dissonância em que estamos mergulhados.
Não podemos, sequer, nos escondermos por detrás de artifícios jurídicos; as Constituições e as leis são respostas históricas e políticas que países de dão num determinado momento da sua história. Visivelmente as leis que temos e os mecanismos de fazer política já não satisfazem o nosso viver em comum. Então não temos que ter nenhum receio, não temos que ter nenhum estado de alma em denuncia-los. A Constituição não é alcorão, não foi escrita por Deus, a Constituição foi para nos ajudar a viver juntos de maneira pacífica, sem violência e com maior justiça e transparência possíveis. Se elas já não conseguem fazer isto, quer dizer que já não servem. A Constituição e as leis são instrumentos históricos e políticos, criados para servir o bem comum. Se já não conseguem cumprir essa função, devem ser ajustadas, sem medo, para refletir as realidades e necessidades atuais.
É uma verdade a la polisse hoje, commumente admitida, que as mudanças são necessárias. Ocorre lucidez e coragem de reinventar maneiras novas de encontrar soluções novas para solucionar problemas novos. Mas o dilema (kantiano sobre a Revolução francesa) é como acabar com (o perigo) a violência e realizar as reformas e o novo contrato que se impõe?
As mudanças são necessárias, elas têm que ser profundas, estruturais, e não resvalar em compromissos de partidos, de indivíduos ou de grupos. Tem que mudanças que permitam um novo começo, uma nova politeia (política), que integre os interesses de todo o povo de Moçambique. Como realizar esta metanoia, necessária, sem pactuar com a violência, com a polarização da sociedade, com a paralisação da economia, com a vida dos indivíduos - o que prejudica ulteriormente a vida dos mais pobres?
Só um governo (hoje improvável) que todos reconheçam a legitimidade - e com instituições credíveis - pode mobilizar uns e outros para um grande processo e um projeto de desenvolvimento. O papel das elites é central neste processo. A responsabilidade das elites não é simplesmente fazer eco às fofocas e as manifestações e eximir-se das suas responsabilidades de esgrimir ideias e propor soluções suscetíveis de abrir caminhos de paz e de esperança.
As elites intelectuais são chamadas a pensar e propor caminhos viáveis e ousados, que respondam às questões estruturais do país; a imaginar um novo começo, um novo projecto de nação voltado para um amanhã mais justo e solidário. As elites políticas são chamadas a implementar um novo projeto de sociedade mas, para isso, é imperativo abandonarem posturas defensivas ou dominadoras e assumir a coragem de dialogar e construir consensos genuínos. O futuro de Moçambique depende da capacidade de suas elites intelectuais de re-imaginar a nação e, da sua elite política, a implementar um novo projeto de sociedade. Mas para que tal projeto tenha com um futuro, ele tem de ser consensual, e o(s) consenso(s) constroem-se discutindo com seriedade e não com falsos compromissos, com acomodações, mas com a vontade de fazer uma agenda comum; o ponto de partida é um reconhecimento mútuo entre as forças em disputa e uma decisão consciente de abandonar a lógica de dominação; construir consensos nacionais que transcendam interesses partidários.
Não podemos omitir que o rastilho do caos são os resultados eleitorais, cuja proclamação pode aumentar o fogo num país já em chamas (…). Quaisquer que sejam os resultados pelo Conselho Constitucional , não serão de natureza a apaziguar as tensões, a despolarizar a sociedade e trazer a paz social, conditio sine qua non para solução de todo e qualquer problema das populações: pobreza, desigualdades (…). Aliás, o seu anúncio risca de avolumar as tensões.
Quando se apaga um fogo, quando os bombeiros chegam numa casa em chamas, a prioridade não é saber quem é o pirómano (incendiário), não é saber se o incendio foi propositado ou foi acidental; o mais importante é apagar o fogo. Então, não se trata aqui de tentar incriminar pessoas, encontrar responsáveis, encontrar culpados, saber quem tem que pagar por isto ou por aquilo. A primeira -e a mais importante coisa a fazer é apagar o fogo. A primeira das coisas a fazer, é salvar o que é salvável de uma casa em chamas e a arder. E, depois disso, vamos encontrar maneiras para tentar reconstruir a casa, para que ela seja habitável, buscando a justiça.
É importante buscar a justiça. Mas não a justiça dos tribunais, isso podem ser ingredientes que não nos ajudem a ultrapassar a gravíssima crise actual. À justiça que precisamos é a justiça de uma costureira que, pegando partes diferentes e, com uma agulha e muita tenacidade, coze uma moçambicanidade - possível e desejável-, capaz de nos unir para juntos construirmos um futuro diferente. Essa justiça deve superar divisões (rácicas, tribais, regionais, religiosas hoje em ascendência) e desigualdades históricas, permitindo que o país avance como uma nação coesa e inclusiva.
O momento exige urgência. Moçambique enfrenta um incêndio político e social que precisa ser contido antes que consuma completamente o tecido nacional. Assim como os bombeiros dão prioridade a salvar vidas e apagar o fogo antes de buscar culpados, também devemos nos focar em estabilizar o país, antes de nos perdermos em acusações ou disputas recíprocas. A urgência de uma solução concordada, antes da proclamação de resultados, é maior e mais urgente do pode nos ensinar qualquer dicionário, enciclopédia ou gramatologia sobre o significado do termo urgência, ela é a condição para evitar um conflito ainda maior, nem que para isso tenhamos que subverter as ordens jurídicas e constitucionais, sobre o altar da paz e da integridade do país.
Quando a casa está a arder, quando existe o perigo que a nossa casa única e comum seja consumida por chamas, a gente deve agir com a velocidade que a situação exige, o que nos impõe uma velocidade de pensamento e de ação. Precisamos, muito rapidamente, de encontrar soluções para evitar que se avolumem, ainda mais, as polarizações, que se avolume ainda mais o descontentamento, que se avolumem ainda mais os conflitos. Temos que agir depressa, com rapidez, mas uma rapidez ponderada, que não se confunde com a precipitação.
Esta urgência urgente, só pode ser alcançada por meio daquilo que chamou-se a paz dos bravos, que não é uma derrota de nenhuma das partes ao contrário, um caminho para o regresso da harmonia, uma caminhada comum, em que os ideais de que cada um é portador -que correspondem a uma parte da população-, possam ser conjugados para criarmos uma plataforma na qual todos os moçambicanos se reconheçam.
A Paz (compromisso) dos Bravos é um ato de coragem e visão. Ela exige que se abandonem as soluções antiquadas e se enfrentem os desafios hodiernos com inovação, compaixão e compromisso para com o futuro. No centro da paz dos bravos está a ideia de que, em tempos de crise, a verdadeira bravura não está em perpetuar o conflito, mas no abdicar de interesses próprios em favor do bem maior.
Não há paz sem concórdia que, poe sua vez, passa pela justiça. Mas quer a concórdia, quer a justiça exigem a coragem do compromisso, de saber que em algumas coisas eu tenho que aprender a ceder, a não ter sempre razão mas, sobretudo, a com-construir (com os outros) uma estrutura na qual todos nos reconhecemos e estamos prontos a colaborar para juntos construir um Moçambique melhor para todos.
É preciso a coragem de aceitar que, numa negociação, ninguém tem a razão absoluta, que ninguém é o dono da verdade e da razão. Não podemos construir com os outros fazendo monólogos, mas também não podemos construir com os outros fazendo polílogos -em que cada um fala na sua direção sem ouvir as razões dos outros. Temos que encontrar um ponto de encontro, o diálogo para o dialogo, único meio que nos pode levar a convergência. É esse diálogo dialogante que pode trazer compromissos e favorecer consensos.
A paz dos bravos em Moçambique só pode ser construída quando os líderes perceberem que o bem-estar de milhões de moçambicanos, vulneráveis, depende de sua coragem em dialogar, para construir o futuro juntos. É tempo de Moçambique parar de olhar para trás com ressentimentos e comecar a olhar para frente com responsabilidade.
A paz de bravos não é uma paz imposta pelo medo ou pela submissão, mas uma paz conquistada por aqueles que, com coragem, reconhecem que a continuidade do conflito é uma derrota para todos. É uma paz que requer sacrifício, diálogo honesto e, sobretudo, a coragem de ceder onde for necessário, em nome do bem comum. A "Paz dos Bravos" não é uma rendição e muito menos um ato de fraqueza. É, pelo contrário, um gesto de coragem, sacrifício e visão (Kant, Rawls, Mandela), onde os líderes de lados opostos, reconhecendo o peso do conflito sobre os mais vulneráveis e sobre a integridade do país, abandonam interesses pessoais (e de partes/partidos) e comprometem-se a unir forças em nome do bem comum.
Em Moçambique, onde as disputas ameaçam a estabilidade do país, a paz de bravos é urgente para desarmar a armadilha da fragmentação interna, da pilhagem de recursos e do colapso da convivência comum. A insistência em vitórias absolutas levará à destruição mútua. Uma Paz moçambicana só é possível com concessões mútuas e alianças pragmáticas, para preservar a paz e a unidade do pais.
Severino Ngoenha, Augusto Hunguana.
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