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Do Annus Horribilis (2021) ao Annus Mirabilis (2022)?
Se vencermos esta batalha, 2022 será (para os nossos parâmetros) um Annus Mirabilis. Se não, como os cavalos que puxavam a carroça foram reformados pela máquina a vapor, no Sec. XIX sem que ninguém nada lhes perguntasse, também nós podemos vir a ser reformados como País, Povo e, até, espécie (Yuval Harari).
O sábio soviético Vladimir Vernadsky – que cunhou o termo biosfera – profetizou, em 1920, que a humanidade estava a entrar numa nova era geológica. Em 2000, o prémio Nobel da Química (1995) Paul J.Crutzen, popularizou o termo antropoceno, para designar uma nova era geológica caracterizada pela influência sempre maior do homem sobre o ambiente terrestre. Pela primeira vez as sociedades eram capazes de alterar, de maneira decisiva, o ambiente a nível mundial: a humanidade passava então ser a maior força geológica activa na natureza e o homem atingiu o nível de principal agente geológico.
O antropoceno sucede ao holoceno, começado há 12 000 anos e caracterizado por um aquecimento natural que favoreceu as revoluções neolíticas (domesticação das plantas e dos animais, condição para o estabelecimento de sociedades sedentárias e hierarquizadas) em certas zonas temperadas do mundo.
Em 1972 o Clube de Roma publicou um relatório intitulado “Os Limites do Crescimento”. O relatório dizia que, se a humanidade continuasse a manter o consumo ao mesmo nível de então, em consequência da industrialização, os recursos naturais se esgotariam apenas em cem anos. O filósofo Hans Jonas, em “O Princípio Responsabilidade”, em 1979 (depois do nascimento da ecologia política), alargava o imperativo da responsabilidade numa perspectiva heideggeriana, da natureza para com os outros homens.
O Annus Horribilis 2021, depois de muitos tergiversações, proclamações, denegações, polémicas foi obrigado, à força de factos, a admitir a veracidade das mudanças climáticas e da responsabilidade da acção do Homo Faber nesse processo. Os especialistas falam do desgelo dos glaciares do Antártico a uma velocidade vertiginosa e da urgência da necessidade de abandonar o uso de energias fósseis para salvar o salvável. Se tal não acontecer, os glaciares vão descongelar, encher os oceanos, que por sua vez vão transbordar e invadir terras habitadas por humanos. Diante da urgência, que se conta em meses, os países mais poluidores do mundo se dão uma meta que varia entre vinte a trinta anos para abandonar o uso de energias fósseis.
Para além das questões ambientais, o turismo espacial, em voga entre bilionários, pilotado por Jeff Bezos (New Shepard, da Blue Origin), Richard Branson (Virgin Galactic) e Elon Musk (SpaceX) que pressupõem altas tecnologias e custos extremamente avultados levantam a segunda questão de Hans Jonas: a relação inter-humana. As diferenças tecnológicas foram os factores decisivos que facilitaram a escravatura a partir do século XV e o colonialismo no século XIX. Hoje entre os nossos tchovas e enxadas de cabo curto e as naves espaciais, estamos diante da maior discrepância tecnológica de sempre.
Se a darwiniana seleção natural parou, parece que o evolucionismo continua, conduzido desta vez, pelos artefactos tecnológicos do antropoceno, que são os mais díspares e distantes entre os artefactos mais antigos (mas ainda em uso) e os novos que a história jamais registou. Os historiadores e os economistas concordam que as culturas e as sociedades abertas (Karl Popper), em contacto e em trocas umas com as outras, têm maiores possibilidades de se desenvolverem e evoluírem do que culturas fechadas e em autarcia. É neste sentid,o que alguns revisionistas e saudosistas continuam a ver o colonialismo como uma etapa importante para a evolução do continente africano. Todavia, no cômputo geral, o encontro com o ocidente, serviu a este para aumentar o seu desenvolvimento e acentuar a sua superioridade e, mutatis mutandis, a manter a África subdesenvolvida; além disso talvez, o processo de diferenciação a que se assiste hoje e não cessa de aumentar, tenha engodado e sido favorecido pelos eventos dramáticos e traumáticos para a África, nesse período histórico.
Os gurus das novas tecnologias, apesar das diferenças, têm um programa científico, ideológico e político comum. Por detrás dos rótulos /labels mundialmente conhecidas como Google, Facebook, Amazon, PayPal e dos empresários midiáticos e de sucesso (Patri Friedman, Peter Thiel) se esconde uma aliança e um projecto de mudar o curso do destino humano. Cientistas (das nano-tecnologias, biotecnologias, inteligência artificial) e os trans-humanistas sonham prolongar a duração da vida até ao infinito, ou aumentar as suas competências: todos militam para uma ruptura metafísica. Uma vez que a chamada singularidade tecnológica não é apanágio de qualquer um, e que os homens têm capacidades diferentes de aceder às melhorações biotecnológicas, isso vai afectar a ideia mesma da condição humana, fundamento do direito comum da humanidade. Muitos admitem que a evolução da nossa espécie vai se separar em diferentes ramos: os normais de hoje, homens modificados geneticamente, homens aumentados tecnologicamente, cyborgs: a humanidade não será mais uma (Kevin Kelly). Existirão relações de escravatura entre post-humanos e/ou outros? É concebível, neste contexto, uma declaração de direitos humanos?
A simples discussão entre o Director do Programa Alimentar Mundial (David Beasley) e Elon Musk sobre a maneira exacta em como seis mil milhões de dólares – que são dois por cento da fortuna do dono da SpaceX – podem erradicar a fome no mundo é uma abominação que nos deveria escandalizar. Até os grandes liberais como Hayek, Stigler e Friedman nunca imaginaram que uma tamanha concentração de riquezas nas mãos de poucas pessoas pudesse acontecer, para não falar dos velhos liberais políticos Locke, John Stuart Mill (…) que, nas revoluções liberais, ao lado da liberdade, defenderam sempre a igualdade e a fraternidade.
O conceito de Annus Horribilis foi utilizado pela primeira vez em 1891, ano a seguir àquele em que a igreja católica tinha proclamado o dogma da infalibilidade do Papa. 2021 é um Annus ainda mais Horribilis porque, de facto, sanciona a falência do humanismo, da unidade do género humano – em nome do qual se fizeram e se fazem todas as lutas e revoluções pela igualdade – dos valores do Iluminismo e, talvez até, dos valores liberais (como a democracia, hoje em queda livre em todos os países) e económicos, onde o indivíduo mais do que livre se tornou mónada.
Estas questões ontológicas, fundamentais, do relacionamento com o outro e com o mundo (Heidegger) foram ofuscadas e veladas pela tragédia da COVID 19 que, porquanto perigosa e preocupante, é passageira embora longa. Porém a comunhão ecuménica no medo, e os arrependimentos e promessas hipócritas e cínicas (Sloterdijk) de confessionário, não serviram para uma auto reflexão crítica sobre a condição humana e sobre o significado e responsabilidade de ser no mundo e estar com os outros (Heidegger). Passado o susto inicial, com o aparecimento das primeiras vacinas, a predação do mundo continuou – e até se acelerou com a descoberta e exploração de novas fontes de energias fósseis – e as promessas de uma maior solidariedade, até na distribuição das vacinas (em nome da imunização das partes, como condição da imunização do todo) não foi comprida.
Em nenhuma parte do mundo se assistiu a uma única manifestação pública a favor da distribuição universal e gratuita da vacina nem do custo proibitivo para os pobres que as big farmacológicas impuseram. Os únicos que fizeram ouvir a própria voz (para além dos reacionários da direita) foram os negacionistas, alguns dos quais trânsfugas da luta contra a globalização neoliberal que, por clara falta de pontaria, e vítimas do que Alfred Whitehead (filósofo dos processos) chamou a falácia de uma realidade deslocada, negaram a evidência científica do COVID e com isso, a necessidade da vacina e de outras medidas inerentes.
Nós estamos na corda bamba dos nossos dilemas e aporias: resistir à COVID 19 sem vacinas suficientes, mas sem estrangular nem o nosso pobre sistema de saúde nem o pouco, muito pouco, de economia que temos. Porém, o 2022, para ser um Annus Mirabilis, comporta outros desafios fundamentais que se resumem em quatro pequenas e sucintas teses.
Primeiro a questão do gás. O consenso sobre os efeitos nefastos das energias fósseis sobre o planeta é doravante universal e Moçambique passou de quinto a primeiro país do mundo mais vulnerável às mudanças climáticas. Para além do essencial dos nossos grandes projectos se ter feito em volta de energias fósseis, depositámos as nossas esperanças de crescimento em torno do gás, agora em ruptura e revelia com o consenso global, como se viu nos panfletos de Glasgow e no processo, em curso em Londres, contra o financiamento das jazidas do Rovuma.
Das propostas que nos chegam do ocidente, para além do ecologismo (dos Vegetarianos, veganos, com o uso intensivo de transportes públicos e de bicicletas, a promoção dos automóveis elétricos, e do car sharing), no essencial, prevalece a posição do Bush pai – que, contra a tese de decrescimento económico defendida por Serge Latouche, respondeu, em tom peremptório e arrogante: ‘o nível de vida americano não é negociável’ – e externalizam as soluções com políticas de quotas (em que os países pobres acabam por se encontrar como devedores) ou, como Macron, que propõe até uma Amazónia sob gestão internacional. A nossa alternativa tem que residir numa política endógena e autocentrada de produção de energias renováveis, o que exige uma política correcta e firme de ciência e de tecnologias.
Segundo: o desafio de vencer o terrorismo. Não podemos, sózinhos, fazer face ao terrorismo. Porém, o desafio da inteligência política consiste em aceitar e beneficiar dessa colaboração, sem transformar o país numa nova Síria, nem hipotecar a soberania e a integridade do País. Importa, sobretudo, considerar o Norte tão importante (ou mais importante ainda) que o Sul no que respeita ao estabelecimento de verdadeiros, autênticos projectos de desenvolvimento que abram perspectivas de melhorias reais (não cosméticas) das condições de vida e de progresso das populações.
Terceiro: Evitar, (mordicus) tenazmente, cair definitivamente numa pendência autoritária (oposições sem voz no parlamento, sociedade civil ignorada ou atacada, manifestações proibidas) e fortificar as instituições e o espírito democrático. Isso implica rever o sistema de discussão de quem deve representar o Povo no órgão legislativo do Estado e de como devem ser eleitos tais representantes; reformar o estatuto dos Deputados para que estes saibam que devem regularmente (duas a três vezes por ano) visitar as zonas que os elegeram para prestar contas a quem lhes deu a responsabilidade de defesa a nível nacional dos seus interesses locais. Mais do que interesses de cada Partido representado, deve vigorar o espírito de interesse na unidade nacional e do dever de cada um de contribuir para o progresso do País.
Quarto: Evitar que a purga necessária de um Estado e governações promíscuas e corruptas na BO contraia a síndrome da revolução francesa – que terminou na violência – e se conclua sem dilacerar o Estado e os seus atributos de garante da Constituição, da soberania, da integridade territorial e da unidade nacional. Impõe-se a revisão de todo o sistema Judicial retirando-o do “contacto” com o poder Executivo e garantindo a sua total e completa independência.
Em suma, trata-se salvaguardar o País. Se vencermos esta batalha, 2022 será (para os nossos parâmetros) um Annus Mirabilis. Se não, como os cavalos que puxavam a carroça foram reformados pela máquina a vapor, no Sec. XIX sem que ninguém nada lhes perguntasse, também nós podemos vir a ser reformados como País, Povo e, até, espécie (Yuval Harari).
Severino Ngoenha , Carlos Carvalho, Luca Bussoti
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