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Atravessar o mar alto
Para os marinheiros que, apesar das ondas gigantescas e as turbulências do alto mar estão dispostos a continuar a remar (lutar) por Moçambique, não há tempos difíceis ou marés que não possamos atravessar (Édouard Glissant).
Vivemos Tempos Difíceis. Só o título é emprestado ao escritor Charles Dickens (1854), porque as dificuldades do tempo que vivemos, não têm a ver com a situação social do proletariado inglês de então, mas com o mar – sempre mais alto – em que Moçambique se está a afogar, obra combinada (consequente) da destabilização deliberadamente programada por "...aqueles que não querem que a África se desenvolva em liberdade" (Nyerere) e da falta da auto vigilância crítica da Frelimo e alguns ex-camaradas, xiconhocas, que se deixaram capturar pela pecúniocracia.
Os tempos difíceis relatados por Dickens, foram o cenário no qual se construíram os monumentos teóricos que fundamentaram os debates, as lutas políticas e sociais até ao final do século XX. Foi sobre e contra ele que se conceberam a(s) filosofia(s) da miséria de Proudhon e outros socialismos utópicos – Charles Fourier, Saint-Simon, Robert Owen – e anti-misérias da filosofia (que para Marx se limitavam a interpretar o mundo ao invés de transformá-lo), que se desconstuiram as economias políticas liberais (Adam Smith, Ricardo), que desencadeou a ideia do socialismo científico como (desesperado) antídoto que favoreceu a tomada do poder por Lenine e pelos bolcheviques. O objectivo último destas diatribes teóricas e políticas está, eloquentemente, manifesto no percurso intelectual do filósofo Ernst Bloch que, do Geist der Utopie (o espírito da utopia) de 1918 chegará ao Das Prinzip Hoffnung (princípio esperança) em 1954-1959, obra monumental com a qual ele tira a esperança da dimensão meta-social em que uma certa teologia (virtude teologal) a tinha infernada, restituindo-a à sua dimensão existencial que implica o que Hans Jonas chamara, em 1979, o princípio responsabilidade.
É sobre a ideia e partindo do princípio da responsabilidade (Booker T. Washington) que se construiu todo o pan-africanismo (de Toussaint Louverture, em Haiti, até Mandela, na África do Sul) e o percurso libertário africano. Em 1865, a décima-quinta emenda da constituição americana reconheceu aos negros os mesmos direitos constitucionais de que gozam os seus concidadãos brancos; no espaço da língua portuguesa – dos chamados luso-brasileiros – a abolição da escravatura verá o dia só vinte anos mais tarde, naquele fatídico 1885 em que, em Berlim, se legalizava o colonialismo e se cortou, com gélidas linhas geométricas o continente Africano à revelia das tradições e todos os restantes valores culturais. Para além do nascimento reactivo e reacionário de movimentos como o KKK (moralmente reabilitado e politicamente reactualizado na América de Trump) um século e meio de reconhecimento da cidadania jurídica não correspondeu, na devida proporção, a uma integração social daí, os movimentos de direitos cívicos encabeçados por Martin Luther King na década de sessenta do século vinte e as quotas raciais de Lula no início do século XXI.
Se a luta contra a escravatura foi um processo longo, destituído de uniformidades, William Dubois tinha entendido que a integração social passaria também por um longo processo político, que não podia prescindir de um empenho militante por parte de uma vanguarda, sobretudo no interior da elite intelectual dos ex-escravos. Em 1907 nas quedas do Niagara, (perto da fronteira com o Canadá) ele reuniu a génese do talented tenth (um décimo dos intelectualmente dotados), na qual nasceram o movimento político do NAACP e o jornal Crisis (seu braço intelectual) que será, em grande parte, o espaço de existência e de incentivo do que Alain Locke apelidou de Black Renaissance, publicando obras icónicas de Langston Hughes, Claude McKay, Sterling Brown…
A necessidade de uma elite intelectual militante e engajada na causa dos povos, foi reafirmada pelos intelectuais da negritude, sobretudo Césaire e Senghor. Foi esta dimensão da responsabilidade para com os povos que caracterizou e fez a grandeza política dos Nkrumahs, Nyereres, Lumumbas, Cabrais (…); foi o Lutar por Moçambique (título da obra seminal de Mondlane) que fez a grandeza e o reconhecimento da Frelimo.
Depois, a história e as ideologias dos vencedores, pela razão da força e contra a força da razão, impuseram lógicas de (re-)dominação que fazem recuar séculos de luta. Porém, o descalabro recente do ANC, como de muitos partidos independentistas como a ZANU, ZAPU (...) não se deve, in primis, ao desfecho pro-liberal (Fukuyama) da guerra fria, no interior da qual os africanos foram forçados a inscrever a sua ação militante. Não foram – apesar de devastadoras – as estratégias e veleidades de dominação nunca abdicadas pelos pretensos homens superiores, foi pelo facto dos militantes terem claudicado, vacilado e se deixado cooptar – em nome do triunfo dos tempos do individualismo liberal – para o lado dos vencedores – apesar de saberem que com a sua des-militância, empurraram a maioria dos mais fracos para o calvário de novas e mais sofísticadas formas de opressão – como são exemplo as dívidas ocultas e o narco-petro-jiadismo de Cabo Delgado, com a expulsão ou morte daqueles a quem Fanon apelidou de condenados da terra: aquela miríade de moçambicanos que não sabem comprar acções, jogar na bolsas de valores, seguir a flutuação dos câmbios, gerir patrimónios...
Vivemos temos difíceis, estamos no mar alto. Esta profecia de Nyerere, pronunciada no momento mesmo da nossa independência, nunca foi tão actual. Como resistir à crescente destabilização (com cooptações pecuniocráticas internas e ataques narco-petro-jiadistas externos) que mina e coloca em perigo a existência mesma de Moçambique?
A Frelimo está já na azáfama da preparação das teses para o próximo congresso. Mas porque chatear-se com uma Frelimo que parece ter renunciado ao povo e estar preocupada só com o poder (e as mordomias que ele permite) e com ela própria? Porque, feliz ou infelizmente, nos próximos anos – não por mérito, mas por maquiavelismos políticos, falcatruas eleitorais, pela passividade excessiva, irritante e culpada do povo, pela cobardia das elites e, sobretudo, pelo demérito e incapacidade dos partidos da oposição – continuaremos a ser governados pela Frelimo. Mas qual Frelimo?
Na derradeira reunião do Comité Central, antes das últimas eleições, todos os seus membros conheciam a situação do país, as condições imorais do Estado, o envolvimento das lideranças e candidatos em falcatruas, a incapacidade governativa, a falta de isenção e de princípios morais, mas ninguém os teve no lugar para dizer não, isto não é ou não pode ser a FRELIMO que deve governar Moçambique. O pobre príncipe herdeiro (SM), que de mérito e qualidades só tinha o nome, deixou-se crucificar sozinho e as pretensas reservas morais, hipócritas e cobardes, gritaram alto pelo seu silêncio, para depois deleitarem-se em críticas de senhores honrados e bem pensantes, em jantares à porta fechada.
O prelúdio das teses marx-engelianas do manifesto, retomadas (na forma) pelos partidos de esquerda e não só, era o status situationes: o espectro de desolação que pairava na Europa de então. A tese, o espectro de desolação, implicou uma antítese – que se tornou na principal tese (radical) contra a desolante exploração e as desigualdades. A tese do descalabro progressivo de Moçambique exige também uma reação antitética proporcional e à altura do desastre em curso. Esta tem que vir, in primis, do interior do partido, dentro do qual se manifesta, com mais vigor, o naufrágio que, no seu transbordar, inunda, contamina e arrasta consigo o País e o Povo.
Um partido, como toda a organização política ou social, é obrigado, se quer sobreviver, a metamorfosear-se e a adaptar-se às situações movediças dos tempos, o que não é a mesma coisa que definhar, renunciar à sua essência e tornar-se cúmplice da infelicização do seu povo. Se ele abandona, abdica e vira as costas às razões profundas da sua existência, torna-se um aborto e simulacro de si próprio. A história ensina que a Frelimo, desde os seus primórdios, foi um processo de união e, unido, lutou por unir o povo de Moçambique, e assim, depois de uma luta heróica, veio a ser aplaudido por todo o povo como o fautor da liberdade e independência. Toda e qualquer ação que rima no sentido inverso é, por antonomásia, contrária ao espírito da FRELIMO de Mondlane, de Machel e de Marcelino (figuras que sempre nos olharam juntas de toda a literatura e prospectos nos primeiros gloriosos anos da Independência). Não se trata da ideologia, que foi a roupagem de uma escolha obrigada num quadro histórico da luta entre imperialismos em confronto com a qual a Frelimo de então teve que fazer contas. Hoje, paradoxalmente, depois de sucumbir à ideologia liberal, no seu pior sentido, os ex-herois montaram na sela do liberalismo e tornaram-se, eles mesmos, fautores daquelas razões desumanas antigas que tinham levado à criação da Frente; de libertadora esta tornou-se agora o maior mal dos moçambicanos. O próximo congresso tem que decidir de que lado está a Frelimo de hoje e quem está onde. Se é o inteiro partido que renuncia ao povo – tem o direito de fazê-lo, muitos partidos históricos desapareceram ou mudaram de orientação política – tem a obrigação moral (se ainda têm alguma) de dizê-lo. Se é uma questão de indivíduos, existe a obrigação política de fazer a destrinça e separar as águas. Esse processo de clarificação é necessário para que os cidadãos possam saber com quem podem contar e fazer as suas opções político-eleitorais com conhecimento de causa: saber quem é quem, quem quer o quê, quem está onde releva da moral política e do dever para com o povo por parte de quem governa e quer continuar a governar.
Não se trata de se opor a que alguns guebuzas e guebuzistas (que têm no dinheiro o seu próprio totem) sejam ricos, nem opor-se à meritocracia – dogmas liberais e neo-liberais de hoje – mas lembrar que o liberalismo económico – como o político – tem regras. Já Hobbes – que ninguém pode suspeitar de esquerdismo – preocupado com a paz social e contra o bellum omnia contra omnes – ao mesmo tempo que defendia que as liberdades fossem inscritas na pauta dos direitos, também sublinhava que os direitos implicam necessariamente deveres (sociais). A questão dos deveres varia no tempo e no espaço: uma certa geração e uma certa Frelimo soube interpretar e assumir os deveres do seu tempo (Frantz Fanon). Quais são os deveres que a Frelimo e o conjunto das elites políticas, económicas e sociais estão prontas a assumir hoje, a favor da enorme massa de moçambicanos que padecem de fome e novas formas de opressão? Podemos abandoná-lo (o povo) à ideologia única que o nosso tempo prodigaliza, mas temos que admitir e dizer com clareza que o povo de Moçambique deixou de ser a prioridade. É disto que se trata, é esta premissa fundamental que o congresso deve clarificar, subordinando a ela todas as suas teses: a Frelimo continua com o povo de Moçambique ou está unicamente interessada nela própria? É esta, quase aporia, que o próximo congresso da Frelimo é chamado, terminantemente, a sentenciar, se ele quiser ser relevante. Se ele não tiver a coragem de o fazer, o tempo e a história, inelutavelmente, decidirão por ela.
Cada um é livre de escolher para onde a razão e a consciência (se tiver uma) lhe mandam, mas duas injunções se impõem: primeiro, ter consciência de que a maioria do povo de Moçambique não está em condições de entrar na competição do capitalismo financeiro global, não tem nem conhecimento nem dinheiro e, por isso mesmo, a nossa renúncia a ele significa remandá-lo para a danação; segundo, que se o poder, o dinheiro e o enriquecimento pessoal forem a nossa opção principal, que se tenha o pudor de não falar em nome povo, que se tenha a caridade de deixá-lo sucumbir com um mínimo de (aparente) dignidade, sem ter que suportar, por cima da sua indigência, a nossa hipocrisia.
Para os marinheiros que, apesar das ondas gigantescas e as turbulências do alto mar estão dispostos a continuar a remar (lutar) por Moçambique, não há tempos difíceis ou marés que não possamos atravessar (Édouard Glissant).
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