Atravessar o Mar Alto (2026)

Cinco décadas de independência, um quarto de século vivido: tempo de capitalizar a travessia

Tug Boat or Police Boat?

Disseram-nos isso quando tudo ainda era celebração,
quando a independência tinha o sabor da aurora
e a história parecia finalmente do nosso lado.

Foi Júlio Nyerere quem o disse.
Pan-africanista convicto.
Homem de uma moral política rara.
Aquele que acolhera a FRELIMO na Tanzânia
quando a liberdade ainda era clandestina
e a esperança precisava de abrigo.

Falava com autoridade histórica e ética.
E no meio da euforia advertiu:
estamos no Mar Alto.

Livres, sim.
Mas não chegados.
O navio lançado,
o porto ainda invisível.

O Mar Alto não era uma metáfora pessimista.
Era um aviso de maturidade.
A liberdade conquistada
não coincidia ainda
com a realização dos objetivos
pelos quais o povo lutara.

Cinco décadas depois,
ao entrarmos em 2026,
com cinquenta anos de independência cumpridos
e o primeiro quarto do século XXI fechado,
percebemos que o Mar Alto não passou.

Talvez se tenha tornado mais instável.

As ondas cresceram.
Vieram tsunamis de ideias -
modelos impostos como mapas universais,
sem leitura das nossas correntes.

Vieram ciclones -
não por culpa nossa -
fazendo de Moçambique
um dos rostos mais expostos
da injustiça climática global.

Mas há ondas que não vêm do céu.
Vêm da política do mundo.
Da economia global.
Da geopolítica da força.

Como dizia Nyerere,
há sempre aqueles
que não querem que África
se devolva à liberdade.

O mundo que conhecemos mudou radicalmente.
Caiu o Muro de Berlim
e com ele a ilusão de escolha.
Fomos empurrados para um liberalismo obrigatório,
depois para um neoliberalismo exausto,
agora para um unilateralismo armado,
onde a força voltou a ser linguagem.

As guerras frias regressaram -
frias no centro,
quentes nas periferias.
Ontem foram os nossos dezasseis anos de guerra.
Amanhã, o risco de novas disputas globais
travadas sobre os nossos recursos.

Moçambique está novamente no centro do mapa
não pela sua soberania,
mas pelos seus minerais.

É este o Mar Alto de 2026.

E a pergunta não pode mais ser adiada:
como atravessar?

Atravessar o Mar Alto
não é negar as ondas.
É organizar o navio.

O barco chama-se instituições.
Sem elas, entra água por todos os lados.
Instituições frágeis
transformam qualquer tempestade
num naufrágio.

O leme chama-se liderança.
Não autoridade ruidosa,
mas lucidez.
Conhecimento do tempo histórico.
Capacidade de decidir
sem perder o rumo coletivo.

A carga chama-se soberania económica.
Sem ela, navegamos sempre ao serviço de outros portos.
Produzir, transformar, decidir -
não como isolamento,
mas como dignidade estratégica.

Mas nenhum navio atravessa o Mar Alto
sem ciência da navegação.

Essa ciência começa por nós próprios:
conhecimento da nossa história,
das nossas fragilidades,
dos nossos erros repetidos.

Continua numa ética pública exigente:
moralizar a vida coletiva
não como discurso,
mas como prática quotidiana.

Exige instituições de saber fortes:
escolas, universidades, centros de reflexão,
formação técnica, científica e cívica
para toda a população.

E exige leitura do mundo:
geopolítica, economia internacional,
compreensão das forças em jogo,
para não navegar às cegas.

Mas atravessar o Mar Alto
não significa que todos remem da mesma forma.

Num navio há muitas funções.
Há quem governe o leme.
Há quem reme.
Há quem cuide das velas.
Há quem repare as fissuras.
Há quem vigie do alto do mastro
e avise das mudanças do horizonte.

Remar juntos
não é silenciar diferenças.
É organizá-las.
Transformá-las em trunfos.

O problema não é a diversidade de funções.
O problema é remar em direções opostas.

A nossa história ensinou-nos isso duramente.
Tomámos navios no passado,
mas sem unidade,
sem linguagem comum,
sem conhecimento da bússola,
acabámos submersos.

Não há salvação em saltar do navio.
Nem em esperar resgate de barcos maiores
que passam longe, ocupados consigo mesmos.

A travessia não virá de fora.
Virá da capacidade de harmonizar forças internas,
sem conformismo,
sem exclusões,
sem negação do conflito,
mas com sentido comum.

Nyerere dizia:
o Mar Alto pode ser atravessado,
mas não há milagres.

O único milagre possível
é político, ético e coletivo:
unirmo-nos para uma causa comum.

É isso que 2026 nos pede.
Não mares calmos,
mas navegadores mais maduros.
Não promessas novas,
mas capitalização da experiência.

Cinco décadas de independência,
sessenta anos de África soberana,
vinte e cinco anos de um século vivido:
já sabemos demasiado
para continuar a navegar como principiantes.

Se soubermos aprender com os erros,
transformar dificuldades em saber,
e diálogo em direção,
então talvez possamos dizer,
com sobriedade e esperança,
que 2026 é o ano
em que começamos, finalmente,
a atravessar o Mar Alto.

Reply

or to participate.