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Correspondência sobre imaginação profética, a ação justa e o tempo do kairos

Ensaio em conversa com Samuel Ngale

Estimado Professor Ngoenha,

Escrevo-lhe esta epístola novamente de Freetown, onde me encontro em missão académica, mas com a alma ainda habitada por Moçambique. A distância, como sabe, não apaga as feridas de uma pátria que insiste em chamar de “paz” aquilo que mais parece um silêncio disciplinado. Esta carta é a continuação do diálogo que iniciámos nos ateliers filosóficos de Maputo, onde debatíamos a justiça como espinha dorsal da paz. Considerando que ainda estamos no mês de Outubro em recordamos os acordos de Roma. Hoje, quero regressar a esse debate, guiado pela obra de Tzvetan Todorov e pela convicção de que Moçambique sofre não de excesso de conflito, mas de carência de memória.

Todorov ensina-nos que há dois modos de lembrar: a memória literal, que conserva o trauma como uma ferida aberta e o transforma em instrumento de acusação, e a memória exemplar, que converte o sofrimento em sabedoria moral partilhada. Entre estas duas formas, o nosso país escolheu uma terceira e mais perigosa: a memória seletiva, onde recordamos apenas o que reforça o poder e esquecemos o que exigiria arrependimento. A reconciliação moçambicana fracassou não por falta de acordos, mas porque confundimos esquecimento com cura e propaganda com paz.

Desde a escravidão até à guerra civil, a história de Moçambique é uma sucessão de violências não reconciliadas. Cada regime herdou a amnésia do anterior e a rebatizou de estabilidade. A escravatura, por exemplo, permanece sem luto nacional, sem museus, sem rituais de expiação. O colonialismo português, com o seu chibalo e a cumplicidade da Igreja, continua sem autópsia moral: transformou-se em narrativa heroica da libertação, onde só há vencedores. O Estado pós-independência, ao centralizar o poder e silenciar dissidências, perpetuou a gramática colonial sob bandeira própria. E as igrejas, chamadas a serem voz profética, converteram-se em capelanias do regime, abençoando eleições duvidosas e pregando perdão sem verdade.

Esta é a amnésia institucional de que falava Paul Ricoeur - um esquecimento organizado que destrói a memória ética e, com ela, a possibilidade de justiça. A memória, recorda Todorov, é uma força viva, não um arquivo morto. Recordar é um ato moral. Quando um Estado arquiva a dor e transforma a lembrança em folclore, comete uma nova forma de violência: a violência do silêncio.

A situação atual de Moçambique ilustra essa lógica. Após as eleições de 2024, marcadas por irregularidades e protestos, o Estado respondeu com repressão, e as instituições

 religiosas com prudência. A elite prefere o mito da unidade à confissão pública. Falamos de reconciliação, mas sem nunca nomear os mortos. Fazemos leis de paz que são, na verdade, leis de esquecimento, como notou Belchior na sua crítica recente à política moçambicana. E enquanto isso, os sobreviventes da guerra, os deslocados e os órfãos continuam sem lugar na narrativa nacional - são os fantasmas da nossa República.

A obra de Todorov oferece um caminho alternativo. Ele defende que a memória só é libertadora quando se torna exemplar, isto é, quando transforma o sofrimento em princípio de justiça. Esse caminho requer humildade: a coragem de reconhecer culpa, de incluir o outro na nossa narrativa e de aprender com o passado em vez de o encenar. A Alemanha do pós-nazismo, o Ruanda depois do genocídio ou a África do Sul com a Comissão de Verdade e Reconciliação não são modelos perfeitos, mas provaram que a cura só começa quando a verdade é dita em público. Moçambique, ao contrário, teme a verdade - teme o espelho da memória.

A teologia lembra-nos também que a memória pode ser abusada. Quando a política ou a religião a transformam em ritual de autopromoção, a memória perde a sua função moral. É isso que vemos nas celebrações oficiais e nos púpitos onde se fala de paz sem arrependimento. O verdadeiro perigo não é esquecer, mas lembrar mal — lembrar apenas para legitimar o poder. E, nesse sentido, vivemos uma paz feita de amnésia.

O que seria, então, uma memória exemplar moçambicana? Seria uma memória que não teme o confronto com a escravidão e o colonialismo; que reconhece as purgas e traições do pós-independência; que concede às vítimas um espaço para falar e às instituições um dever de escutar. Seria uma memória pública, participativa e espiritual - capaz de unir o arquivo e o altar. As tradições do Ntumbunuko já o sabiam: a cura só acontece quando o erro é confessado diante dos vivos e dos antepassados. Em linguagem filosófica, poderíamos dizer que a reconciliação exige não só verdade e justiça, mas também ritual e reconhecimento.

Por isso, proponho que Moçambique inicie um novo ciclo moral: a criação de um Fórum Nacional da Verdade e da Memória, que recolha testemunhos de todas as épocas — escravidão, colonialismo, guerra, repressão pós-independência - não para julgar, mas para compreender. Que se institua um Dia Nacional da Memória Ética, distinto do Dia da Independência, para lamentar os nossos mortos e aprender com as suas feridas. Que as escolas reescrevam a história com honestidade e as igrejas redescubram a profecia, substituindo a neutralidade cúmplice pela coragem de nomear o pecado coletivo.

Porque a verdadeira reconciliação não é regressar a um passado idealizado, mas fundar uma nova moral pública baseada na verdade partilhada. O esquecimento é sempre a

 tentação dos poderosos; a memória, a esperança dos que sofrem. A justiça nasce quando estas duas forças se encontram no mesmo espaço ético.

Professor, escrevo-lhe não apenas para partilhar uma reflexão, mas para participar - à distância - no atelier filosóficodeste ano. Creio que a questão que orienta todos nós continua a ser esta: como alcançar a paz tendo a justiça como espinha dorsal? A minha resposta é simples: pela memória redimida. Sem ela, Moçambique continuará a ser uma nação que finge dormir para não sonhar.

Com estima e inquietação fraterna,

Samuel Joina Ngale - Freetown, Serra Leoa (Outubro de 2025)

Meu caro Samuel,

Li a tua carta vinda de Freetown como quem recebe um espelho longínquo: nela revi a inquietação de um tempo que nos persegue e a coragem rara de um olhar que se recusa a pactuar com o esquecimento. Freetown, esse nome que já é um programa filosófico, devolve-nos à ironia da história africana: tantas “cidades livres” erguem-se sobre memórias escravizadas. Escreves de um lugar que lembra o que nós, em Moçambique, fingimos não recordar - e é essa distância que torna a tua palavra necessária.

A tua reflexão sobre “a paz da amnésia” toca no centro de uma ferida que a nossa geração tentou esconder sob o lençol do pragmatismo político. O silêncio que tu denuncias não é apenas ausência de fala; é o resultado de uma escolha civilizacional: escolhemos a estabilidade antes da verdade, a unidade antes da justiça, o esquecimento antes do arrependimento. Mas uma paz construída sobre o medo e a conveniência é uma casa edificada sobre areia.

Com Todorov e Ricoeur, lembras-nos que a memória pode ser literal, exemplar ou seletiva. Eu acrescentaria: a memória também pode ser redentora. Ela redime quando transforma o sofrimento não em vitimização, mas em consciência histórica. A nossa tragédia não é apenas o esquecimento, mas o modo como o poder aprendeu a administrar o esquecimento como instrumento de governo.

Desde o colonialismo, Moçambique vive sob o império de uma cronologia imposta. Cada regime reescreve a história para fundar a sua legitimidade - como se o passado fosse um terreno a ser ocupado. O resultado é a amnésia organizada que tu tão bem descreves. Mas, diferentemente do simples esquecimento, esta amnésia é uma tecnologia de poder: ela produz cidadãos desmemoriados, e portanto, desarmados moralmente.

Nos Ateliês de Filosofia, discutíamos que a justiça é a espinha dorsal da paz. Permite-me agora reformular: a justiça é a memória em acto. Não há paz verdadeira sem restituição do sentido moral das feridas. Uma sociedade que confunde reconciliação com apatia não é reconciliada - é anestesiada.

Chamo a esta anestesia a paz dos submissos. É o contrário daquilo que chamei, noutro tempo, a Paz dos Bravos - uma paz conquistada na palavra, na coragem de dizer a verdade ao poder, e de reconhecer que a liberdade não é a ausência de conflito, mas a capacidade de enfrentá-lo com dignidade.

A justiça de que precisamos não é punitiva, mas ontológica: deve restaurar o laço rompido entre o homem e a sua história, entre o povo e a sua verdade. A reconciliação começa quando o sofrimento deixa de ser propriedade privada e se torna memória pública.

Concordo contigo: cada regime herdou a amnésia do anterior e batizou-a de estabilidade. Mas acrescento uma provocação: essa amnésia não é apenas institucional - é ontológica. É um modo de ser. Herdámos do colonialismo o hábito de pensar que a salvação vem de fora, e do pós-colonialismo o hábito de pensar que o poder é um bem pessoal. Em ambos os casos, esquecemo-nos de pensar a liberdade como responsabilidade.

É este esquecimento que faz da amnésia a última forma de colonialismo: colonizamos a nossa própria memória. Transformámos os nossos mortos em decoração de feriados e os nossos mártires em slogans eleitorais. A “paz” tornou-se uma liturgia sem fé, recitada por instituições que perderam a alma profética.

Dizes, com sabedoria, que a reconciliação exige não só verdade e justiça, mas também ritual e reconhecimento. Essa tríade toca o coração daquilo que as nossas tradições chamam ntumbunuko: o reencontro dos vivos com o espírito dos antepassados. Em filosofia política, chamaria a isso o retorno da comunidade espiritual - a consciência de que o Estado, por mais moderno que se queira, não pode apagar os rituais de reparação que dão sentido à vida coletiva. Sem essa dimensão simbólica, a justiça reduz-se a administração, e a memória, a arquivo morto.

Sim, precisamos de um Fórum Nacional da Verdade e da Memória, como propões, mas ele só será fecundo se for também um acto de confissão nacional. A verdade cura apenas quando se transforma em partilha moral. A memória só se torna exemplar quando é capaz de se ajoelhar diante dos seus próprios erros.

A tua carta pergunta: “como alcançar a paz tendo a justiça como espinha dorsal?” A minha resposta, Samuel, é que a paz é o fruto maduro da memória reconciliada com o futuro. A memória sem porvir é melancolia; o futuro sem memória é barbárie.

A filosofia deve ensinar-nos a conjugar o tempo moral do povo: o Kairós da escuta, o Chrónos da reconstrução, e o Eschaton da esperança. Só quando estes tempos se encontram é que um país deixa de viver em estado de transição e começa a existir em estado de sentido.

A tua proposta de um Dia Nacional da Memória Ética seria, nesse sentido, um gesto fundacional: o momento em que a nação aprende a lamentar para poder recomeçar.

É aqui que Moçambique vive algo verdadeiramente novo e precioso: pela primeira vez desde a independência, a reconciliação começa a abrir portas para uma escuta pública e partilhada. O processo nacional de consultas, por mais incipiente que ainda seja, está a transformar tanto o povo quanto os governantes: os políticos descobrem-se obrigados a ouvir e não apenas a ordenar; o cidadão comum descobre-se com o direito - e o dever - de dizer a sua verdade. Criou-se um espaço onde a palavra começa a circular como emancipação: quem fala torna-se sujeito, quem escuta assume responsabilidade.

Este movimento de participação alargada é ao mesmo tempo inicial e iniciático. Inicial, porque começa agora - como uma abertura institucional que ensaia o diálogo com todos os moçambicanos. Iniciático, porque ao permitir que cada grupo conte a sua história, abre-se a ferida para a poder curar: o país olha-se por dentro e reencontra a dor que negou. É neste trabalho de palavra - dizer e ouvir - que se forja a possibilidade real da reconciliação. Cada voz que se ergue e cada ouvido que se abre anuncia o nascimento de um nós que não exclui.

O mesmo se aplica à memória e à justiça. Não se reconciliam nações com uma caneta, mas com uma mudança espiritual e comunitária, feita nos lugares onde o povo respira: a escola, a paróquia, a praça, a universidade, o terreiro. É nesses espaços que podemos recolher histórias, criar rituais, devolver voz aos silenciados. A memória precisa de ser encenada junto ao povo, e não no mármore dos gabinetes.

A tua proposta de um léxico comum é certeira. Palavras como verdade, memória, justiça, relação, reconhecimento, escuta e esperança devem tornar-se pedras de fundação ética. Que o Estado as aprenda, que a religião as revalorize, que a escola as ensine, que o povo as diga.

E como medir o avanço? Não em percentagem, mas em sinais de humanidade: o aumento da escuta, a presença dos marginais nos livros, a mudança da retórica política, a criação de memoriais que honram vítimas e não apenas heróis. Um país começa a curar-se quando muda a maneira de falar consigo mesmo.

A filosofia africana ensina-nos: a verdade não está apenas no que vivemos, mas no que ousamos esperar. Ernst Bloch recorda que a esperança é o movimento mais humano, porque nasce do inacabado.  Assim, amigo Samuel, reafirmo contigo: não devemos desesperar. A nossa missão é continuar a semear, mesmo sem garantia de colheita. Porque a terra moçambicana - moral, histórica e espiritual - é fértil. O que plantamos hoje nos Ateliês, nas aulas, nos textos e nas praças, há-de germinar no tempo certo. E se nós não virmos a árvore inteira, veremos pelo menos os primeiros brotos.

A Paz dos Bravos consiste nisto: plantar esperança onde outros celebram o esquecimento. A semente morre, sim - mas só a semente que morre produz o futuro.

Com estima fraterna, confiança filosófica e esperança perseverante,

Severino Ngoenha
Maputo, Outubro de 2025

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