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Da Cracia à Dolia: Fundamentos Ontopolíticos de uma Filosofia Africana da Relação

"Severino, porque não reladulia? Relacracia continua a ter dentro essa cratia que, depois do visto na história, acaba por ser lido como puder de cima para baixo. Melhor abandonar o termo poder e usar directamente o termo servir, serviço... Verdade que tu e eu sempre fomos entendendo puder como serviço...mas hoje em geral a palavra poder veicula tantas coisas...mas não a ideia de serviço... também em Moçambique. Reladulia. Doulos em grego = servo" - (Giuseppe Meloni).

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A herança tóxica da Cracia

De facto, vivemos imersos num léxico político onde os nomes mais nobres — democracia, autocracia, teocracia, burocracia — carregam uma raiz comum: krátos, o poder. Desde a Grécia antiga, o krátos foi instituído como princípio ordenador das formas políticas. Mas o próprio nome do poder carrega em si a semente da sua perversão. O termo grego krátos remete à força, ao domínio, à supremacia. Mesmo nas formas mais aparen temente libertadoras como a democracia — o "poder do povo" — o peso da cracia revela-se na prática como o poder sobre o povo, e não com o povo. É essa perversão da linguagem — que antecede e molda a perversão das instituições — que urge desconstituir.

No meu artigo anterior, A Inominável Ordem do Mundo da Hipnocracia-Relacracia, defendi que a filosofia africana tem um papel fundacional a cumprir: o de gerar novos conceitos a partir de suas experiências locais, de combinar crítica com criação e de tornar-se um espaço de hospitalidade epistémica. Neste novo gesto filosófico, proponho que avancemos na crítica à linguagem política herdada do Ocidente e nos aventuremos a refundá-la a partir do pensamento africano e do pensar-em-comum.

Neste espírito, nasce o conceito de Reladolia, uma proposta lançada por Giuseppe Meloni, teólogo italiano, com quem dialogo frequentemente nos nossos filosofemas. A Reladolia substitui o sufixo -cracia por -dolia, derivado do grego doulos — o servo. Não se trata de submissão, mas de um poder transformado em cuidado, em serviço mútuo, em ministério relacional. Propomos, pois, abandonar o modelo da supremacia e ensaiar uma política fundada na relação e na hospitalidade.

A Cracia como Vício de Origem

A genealogia dos termos políticos ocidentais revela um vício originário: a associação entre governar e dominar. Autocracia, burocracia, plutocracia, teocracia, meritocracia, aristocracia, gerontocracia, tecnocracia — todos indicam formas de poder exercido a partir de uma instância que se separa da comunidade e a governa de cima. Mesmo a democracia, frequentemente idealizada como regime do povo, carrega em si a tensão irresolvida entre representação e dominação.

Essa gramática do poder não é neutra. Ao organizar o mundo pela lógica da cracia, ela naturaliza relações de comando e obediência, torna legítimo o exercício de poder como imposição e dificulta a emergência de formas horizontais de vida comum. A palavra, neste caso, não apenas descreve a realidade: ela a fabrica, a institui, a torna possível.

A Filosofia Africana como Gesto Fundacional

A filosofia africana contemporânea, quando assume o desafio da autofundação epistémica, coloca-se não como reativa ao Ocidente, mas como produtora de universalidade a partir de si. Isso exige ousadia terminológica. O que está em jogo não é apenas substituir palavras, mas propor uma nova semântica da convivência política. A Relacracia, conceito que propus anteriormente, já tentava deslocar o centro do debate do poder individual para a relação. No entanto, como bem assinala Meloni, o sufixo cracia permanece preso a uma lógica de dominação, ainda que suavizada.

É aqui que a proposta da Reladolia emerge como um gesto filosófico radical: substituir o krátos pelo doulos. Deixar de pensar a política como gestão de forças e começar a imaginá-la como gesto de cuidado. A Reladolia não se limita a representar uma nova terminologia; ela encarna um novo horizonte ontológico e ético.

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Doulos: Servir como Fundamento da Política

Na tradição grega clássica, doulos designava o escravo, o servo. Mas na tradição cristã primitiva, especialmente paulina, o doulos torna-se figura central: é o servo por amor, aquele que se faz pequeno para cuidar, proteger e servir à comunidade. Meloni propõe que resgatemos esta dimensão relacional do serviço — não como humilhação, mas como escolha ética e política.

Substituir o krátos por dolia é substituir a lógica do domínio pela lógica da responsabilidade. A Reladolia seria a política da escuta, da disponibilidade, da co-presença. Ela exige instituições fundadas na vulnerabilidade compartilhada e não na força centralizada. Não mais o poder de decidir por todos, mas a responsabilidade de cuidar de todos.

A Hospitalidade Epistémica como Política do Comum

Se a Reladolia é possível, é porque ela nasce de um espaço de hospitalidade epistémica. Um teologo e um filosofo, um padre italiano e um filósofo mocambicano a pensar juntos. Não como fusão de saberes, mas como relação respeitosa entre diferenças. A filosofia africana torna-se aqui não apenas uma filosofia sobre África, mas uma filosofia a partir de África — e para o mundo.

Esse pensamento-em-comum pressupõe que o pensamento não seja solitário, nem autárquico. Ele é sempre relacional, como tudo o que é verdadeiramente humano. Pensar a política a partir do serviço exige também pensar o conhecimento a partir do comum.

O pensamento político moderno, amarrado ao sufixo -cracia, parece ter esgotado o seu fôlego transformador. À medida que termos como democracia, teocracia, burocracia, meritocracia e mesmo a proposta de relacracia são absorvidos pelas gramáticas do poder dominante, compreendemos que a própria matriz etimológica da cracia — fundada na ideia de força, supremacia e comando — bloqueia, já na origem, a emergência de uma verdadeira ética da relação.

É neste impasse linguístico e ontológico que o conceito de Reladolia, inspirado na raiz grega doulos (servo), se impõe não como mero neologismo, mas como gesto filosófico inaugural. Propõe-se, aqui, não uma simples substituição semântica, mas a inauguração de uma nova ordem de sentido, onde o poder deixa de ser domínio e se converte em ministério, não no seu uso corrompido, mas no seu sentido original: estar ao serviço.

A Reladolia não se quer um anti-poder; ela é uma reconfiguração radical da própria ideia de poder — não mais como exercício vertical, mas como reciprocidade horizontal. Não mais como autoridade que se impõe, mas como relação que se oferece. O governar reladolítico não é “decidir por” mas “escutar com”; não é “dominar para” mas “servir através”.

Esta proposta, que emerge de um diálogo entre um filósofo africano e um teólogo europeu, entre um pensamento situado no Sul Global e uma teologia crítica do Norte, realiza já em si o que ela própria prega: a hospitalidade epistémica como fundamento de uma nova política. Não se trata de importar modelos nem de exportar fórmulas, mas de co-criar, a partir do lugar onde se pensa, conceitos com vocação de mundo.

Mas para que a Reladolia não se torne, como outros conceitos, mais uma abstração vazia ou bandeira de ocasião, ela tem que manter três exigências fundacionais: Primeiro, permanecer enraizada nas práticas vivas de cuidado comunitário, evitando a institucionalização prematura. Segundo, manter-se como um conceito vigilante, em permanente autocrítica e reinvenção, sempre atento ao risco de ser capturado pelas lógicas que pretende superar. Terceiro, cultivar uma universalidade humilde, não como norma imperial, mas como convite: um convite ao mundo para pensar e agir a partir da relação, e não da supremacia.

Africa on the globe

É neste horizonte que a filosofia africana, através da Reladolia, pode deixar de ser pensamento periférico e assumir-se como fundadora de uma nova filosofia política do mundo que vem. Um mundo onde o verbo político não será mais “dominar”, mas “relacionar-se servindo”. E onde o pensamento deixará de ser obra de indivíduos isolados para se tornar pensamento em comum — feito de encontros, escuta, e serviço mútuo.

Assim, não será mais a cracia que definirá o político, mas a dolia: não o poder sobre, mas o cuidado com. Talvez este seja o primeiro gesto real de uma verdadeira revolução do pensamento.

Conclusão: Nomear o Mundo de Novo

É tempo de nomear o mundo de novo. Assim como a Ubuntu proclamava “eu sou porque tu és”, a Reladolia proclama: “governo porque sirvo”. Esta não é apenas uma nova forma de pensar o poder, é uma nova fundação para a filosofia política do mundo que vem. A filosofia africana tem aqui um papel profético: ao propor novos conceitos, ela propõe novas possibilidades de vida.

A Reladolia não é uma utopia, mas um conceito inaugural. Ela exige coragem intelectual, revisão profunda da linguagem política e criação coletiva. A revolução começa na palavra, naquilo que chamamos, naquilo que ousamos imaginar juntos.

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