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De 325 d.C. a 2025: ecumenismo ou etnocentrismo?
1700 Anos de um Universal Limitado
Esta semana, o Papa deslocou-se à Turquia para assinalar os 1700 anos do Concílio de Niceia, aquele que a tradição cristã descreve como o “primeiro concílio ecuménico”. Mas é preciso recordar, com rigor, o que significava ecuménico no século IV. Oikouménē não designava, como hoje, o diálogo entre religiões ou culturas; significava simplesmente o mundo habitado - isto é: a parte do mundo conhecida e dominada pelo Império Romano. O universal convocado por Constantino era, portanto, geograficamente restrito, culturalmente homogéneo e politicamente determinado. O universal era o universo do Império.

Agostinho, na monumental Cidade de Deus, não apenas interpretou este legado romano: ele inventou o conceito de mundus. Um mundus teológico, providencial, fechado, linear, que vai do alfa ao ómega, e onde a história humana é conduzida e corrigida pela Providência. O mundus agostiniano não é o globus moderno. O mundus é uma invenção teológica, uma moldura espiritual onde cabia apenas aquilo que Roma conhecia; o globus, ao contrário, nasce das navegações, da abertura atlântica, da multiplicação dos horizontes, da irrupção incontornável de outras humanidades, cosmologias e geografias.
Quando o globus se abriu, o universal romano - agora cristão - teve pela primeira vez de se confrontar com a sua própria insuficiência. O mundo já não era pequeno; o mundo já não cabia no Mediterrâneo. E foi aí que o Ocidente enfrentou duas possibilidades históricas: ou reconhecer que o antigo universal era parcial, e abrir-se ao diálogo com a pluralidade dos povos; ou, ao contrário, impor esse universal etnocentrado ao conjunto do planeta.
Todos sabemos qual das duas opções venceu.
Ítalo Calvino escreveu uma vez que, se nos navios de Colombo tivessem viajado músicos, poetas, filósofos e artistas, talvez o encontro com o Novo Mundo tivesse sido a ocasião de um renascimento do espírito humano. Mas quem chegou foram soldados, conquistadores, burocratas do Império, cuja missão não era compreender - era dominar, pilhar, destruir e converter. Foi então redigido o Ius Inventiones, que autorizava Colombo a “tomar posse” daquelas terras e “convidar” os povos ameríndios a aceitar a única verdade universal - a europeia - sob pena de legítima guerra (Ius ad bellum). Os grandes teólogos de Salamanca, longe de contestarem este abuso, deram-lhe forma jurídica e teológica.
O choque civilizacional transformou-se, assim, em imposição de um universal único.

Giordano Bruno
Giordano Bruno ousou perguntar se a humanidade tinha uma única origem (monogenismo) ou várias (poligenismo), ousou imaginar infinitos mundos, ousou pensar para além da estreiteza teológica da Europa - e por isso foi queimado vivo. Galileu ousou dizer que a Terra não estava no centro, e foi silenciado. O medo do Papa Urbano VIII não era científico: era político. Se a Bíblia deixasse de ser o relato factual da verdade, toda a ordem moral e jurídica construída sobre ela podia ruir. O Ocidente respondeu ao alargamento do globus tentando forçar o globo inteiro a caber no velho mundus.
O Iluminismo proclamou que todos os homens nascem livres e iguais, mas não considerou os negros homens completos. Voltaire, Montesquieu, Rousseau falaram de liberdade, mas toleravam ou justificavam a escravatura. Kant, que definiu o esclarecimento como “a saída da menoridade”, perguntava-se qual era a diferença entre “os animais de um coral e os negros”. Hegel, por sua vez, fez da filosofia da história a mais alta legitimação deste universalismo excludente: a história avança, dizia ele, do Oriente à Europa, e só a Europa é o lugar onde o espírito alcança a liberdade. A África - repito as suas palavras - é “a infância da humanidade”, é “não-histórica”, é “fora da história”.
O universal, afinal, sempre foi um universal contra alguém, e raramente um universal com alguém.
O século XIX radicalizou esta lógica. Se os negros eram “fora da história”, então precisavam de tutela, assimilação, missão civilizadora. As suas línguas tornaram-se dialetos, as suas culturas folclores, as suas religiões superstições, as suas filosofias ausências. A antropologia racista deu corpo académico ao que já era prática colonial: negar humanidade para justificar domínio.
Depois da Segunda Guerra Mundial, o Ocidente proclamou os Direitos Humanos de 1948, mas negou, sistematicamente, a autodeterminação aos povos colonizados. Madagascar, Guiné, Camarões foram massacrados; Moçambique, Angola, Guiné-Bissau tiveram de conquistar a liberdade pela guerra. A Declaração só valia para alguns. A regra era clara: os direitos são universais, mas a sua aplicação é selectiva.
E quando a independência foi finalmente conquistada, o Ocidente encontrou uma nova forma de manter o mundus e controlar o globus: a economia da dívida.
O universal teológico (Agostinho) foi substituído pelo universal racional (Iluminismo), depois pelo universal espiritual (Hegel), e hoje foi substituído pelo universal financeiro, cujo altar são o FMI, o Banco Mundial, os mercados globais e a arquitectura jurídica internacional que transforma países inteiros em reféns económicos perpétuos. O poder substituiu a verdade. A economia substituiu a teologia.
As democracias são reconhecidas apenas se tiverem a forma europeia, mesmo quando essa forma não corresponde às suas estruturas culturais. Constituições são copiadas e impostas como moldes vazios. Modelos que nem sempre funcionam na Europa tornam-se condições obrigatórias para o reconhecimento internacional. A dependência passou a chamar-se “cooperação”.
Ao mesmo tempo, surgiram, no século XX, movimentos intelectuais que denunciaram esta farsa universal. Na América Latina, a Filosofia da Libertação (Dussel, Zea, Quijano, Mariátegui, Maldonado-Torres) desmontou a lógica colonial que persistia para além do colonialismo. Na Índia, pensadores como Dipesh Chakrabarty (autor de Provincializing Europe, 2000) mostraram que o universal europeu é apenas uma particularidade que se fez passar por universal. Nas Antilhas, autores como Édouard Glissant e Patrick Chamoiseau defenderam o “todo-mundo”: um universal plural, relacional, não hierárquico. Em África, a negritude de Césaire - “há duas maneiras de nos perdermos: pelo isolamento ou pelo universalismo” - e o rendez-vous du donner et du recevoir de Senghor abriram o caminho para um novo ecumenismo. A revolução haitiana (Toussaint Louverture), primeira afirmação moderna da universalidade humana, mostrou ao mundo que os escravizados eram sujeitos da liberdade e não objetos da história.
Mas nada disso foi suficiente para derrubar o velho mundus.
As Nações Unidas, criadas para garantir um universal humano real, não conseguiram constituir uma gramática planetária de igualdade. Mantiveram as mesmas hierarquias - os mesmos lugares de fala, os mesmos vetos, a mesma geopolítica. Continuaram a ser, como dizia Cabral, “a continuação da guerra por outros meios”.
O resultado está diante dos nossos olhos: num mundo de abundância, a fome cresce; num mundo de direitos proclamados, o acesso à liberdade diminui; num mundo globalizado, as guerras multiplicam-se e banalizam-se; num mundo interconectado, a voz dos povos continua silenciada.
Levinas, no fim da sua obra, afirmou que o universal deve ser pensado a partir de uma tríade - Jerusalém, Atenas e Roma. Mas essa tríade é, ainda, o eco de Niceia: um universal centrado no Mediterrâneo, que continua surdo às outras vozes da terra. Falta ao universal aquilo que Glissant chamava “a ideia de que o mundo é todo-mundo”.
E é aqui que chegamos ao ponto decisivo.
O mundo global exige hoje aquilo que o mundo romano não soube fazer: um novo concílio ecuménico da humanidade, não de bispos, mas de povos. Não um ecumenismo religioso, mas um ecumenismo humano, político, histórico e planetário. Um encontro onde cada cultura possa dizer a sua parte da verdade, sem ser reduzida, silenciada ou assimilada. Uma refundação do universal, não contra ninguém, mas com todos.
Enquanto esse encontro não acontecer, continuaremos aprisionados no universal etnocentrado de Niceia - agora armado com finanças globais, dívidas impagáveis, guerras justas e democracias sob tutela. Continuaremos a ser governados por um mundus que já não existe, incapazes de habitar plenamente um globus que se abriu e que pertence a todos.
Talvez o verdadeiro aniversário de Niceia - 1700 anos depois - seja este: recordar que o universal nunca foi universal, e que só será, um dia, quando começarmos a escrevê-lo juntos.
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