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É NATAL/FESTA DE FAMÍLIA: BHELA KU NYUMBANI
Em nome do ágape, mas desta vez, sem a ingenuidade das falsas prendas de natal (como aeroportos...) de velhos e novos bustanis, vamos continuar, fortes em nós mesmos (Mac Kay), a escancarar portas, janelas, grades e corações a todo o passante em busca de uma fraternidade humana, para além dos imperialismos e das intolerâncias.
Joséphine Baker, a chamada Vénus Negra, a primeira grande estrela afro das artes cénicas, acaba de entrar no Panteão (do grego pántheion, de todos os deuses) de Paris, dedicado aos maiores nomes da cultura francesa ("Aux grands hommes, la patrie reconnaissante "). O motivo musical mais célebre da artista é a canção, J'ai Deux Amours, Mon Pays et Paris. Na verdade ela tinha um terceiro amor, e foi esse que lhe valeu o reconhecimento e a distinção: o Universalismo, a unidade, a igualdade de todos antes da identidade de cada um, a hospitalidade para todas as diferenças unidas pela mesma vontade, a mesma dignidade e emancipação contra a discriminação (Emmanuel Macron). Para além de ter sido resistente contra a ocupação nazi, ela apoiou a Marcha de Martin Luther King, militou no NAACC e antes do Ubuntu na Africa do Sul, criou o que ela chamava a "Tribo Arco Íris" constituída por 12 órfãos (número que recorda as tribos de Israel e os apóstolos de Cristo) de origens diferentes (coreana, japonesa, colombiana, finlandesa, canadiana, judaico-francesa, argelina, francesa, costa-marfinense, venezuelana, marroquina) que ela adoptou.
Para muitos franceses, e não só, Joséphine Baker é uma Étoile (estrela) que doravante brilha ao lado de estrelas presentes no monumento – da filosofia (Descartes, Diderot, Rousseau, Condorcet...), da literatura (Victor Hugo, Zola, Alexandre Dumas...), das ciências (Marie Curie, Paul Langevin...), da política (Gambetta, Jean Jaurès, André Malraux, Jean Monnet, Simone Veil) – todos iluminando diferentes compartimentos do saber e da existência. Porém, todas estas estrelas – como todos os outros corpos do sistema solar (planetas, asteróides, cometas, poeira) giram em volta do sol o qual Cipriano de Cartago e João Crisóstomo ligaram já não ao solstício de Dezembro e ao culto do Deus Sol (natalis invicti Solis) dos romanos mas o Domini Natale (nascimento do Senhor – Jesus), o que foi confirmado pelo Papa Julius (337-352) e pelo Imperador Justiniano em 529.
Apesar de laicizado e transformado, de panteão politeísta a antropomórfico, são os valores do terceiro amor de J.Baker que celebramos no Natal, socialisticamente Dia da Família. Lenine reivindicou uma influência preponderante para a criação do socialismo científico à obra de Marx e Engels intitulada “A Sagrada Família”. Apesar de ser uma sátira contra os neo-hegelianos, irmãos Bauer, eles não puderam evitar a evocação de Jesus, José e Maria. Porém, o significado que se apregoa relativo ao natal cristão, não é a simples interpretação do mundo que Marx detestava, era o que Alain Badiou chamaria de antifilosofia, uma filosofia que opõe o drama da sua existência a estruturas conceituais, para quem a verdade existe, absolutamente, mas deve ser encontrada, experimentada ao invés de pensada ou construída.
O amor que o Natale Domini propõe, não é o Eros passional de Platão (reivindicado primeiro por Empédocles e muito depois por Nietzsche e Lacan); também não é a Philia de Aristóteles – que pressupunha a equivalência e só podia ser concedida àqueles a quem reconhecíamos uma igual dignidade – mas o paradoxal ágape (cunhado assim por São Paulo a partir do grego agapan, amar, acarinhar), um dom incondicional, gratuito, defendido por Santo Agostinho (Origines) e outros padres da Igreja, antes de ser mobilizado por Marcel Mauss contra o utilitarismo.
O escândalo de Cristo, antes de ser a morte na cruz (Karl Rahner) foi a subversão (Jacques Ellul) da sua vida como Deus e como rei: sem grandes potestades, sem coroas (à parte a de espinhos que lhe foi imposta por escárnio), sem exércitos nem guardas de corpo, sem território nem moeda própria mas, sobretudo, o anacronismo da sua doutrina: fazer do amor (mais do que as outras virtudes teologais), o imperativo e o paradigma da relação entre os homens.
No conflito de amores (Santo Agostinho), antes de ser ofuscado e coberto pelas nuvens espessas da poluição, o novo Sol foi ignorado pelos judeus, que ainda esperam num Deus que desça em foguetões da ‘Space X’ de Elon Musk ou de aeronaves interespaciais da ‘Virgín’, protegido por escudos espaciais, mísseis e bombas dos marines e brigadas vermelhas juntas; encoberto pelos Herodes – de ontem e de hoje – que continuam a degolar crianças, a assassiná-las com guerras petro-narco-jiadismos, mais dívidas ocultas e, sobretudo, com fome.
Numa mistura de apreensão, medo, surpresa, o que o carpinteiro José (e os anjos) terá dito a Baltazar, Gaspar e Melchior (os estranhos reis magos que se apresentaram à porta do estábulo para render homenagem ao homem-deus, não o das biotecnologias de Yuval Harari) foi BHELA KU NYUMBANI; e disse-o não em francês ou o grego dos evangelistas, nem no latim da Igreja constantinamente romanizada, mas num vulgar-menor, uma língua semita – aramaico ou hebraico – com o mesmo estatuto do Citshwa.
Muitas luas depois, nesta nossa terra, ao aparecimento algo inesperado de Vasco da Gama e outros navegadores arrogantes e sem moral, os habitantes do lugar responderam com um BHELA KU NYUMBANI. Os novos chegados (Cheik Hamidou Kane), possuídos pelo Eros (Cupido), viram, na hospitalidade (agapé), fraqueza, oportunidade para rapina e confrontação. Disseram terra de boa gente, mas por detrás da equívoca compreensão semântica – que está na origem do nome ‘Inhambane’ – escondiam intenções perniciosas de conquista e dominação. Por terra de boa gente entendiam terra de gente conquistável, dominável, manipulável que muito rapidamente foi caçada / capturada e vendida primeiro como escravos e depois colonizados.
Hoje, com o tremendo desenvolvimento da tecnologia, todos os inhambanes de África se transmutaram, como estrelas candentes, de boa gente em gente indesejável que ocupa uma terra cobiçada. Das guerras do petróleo desde o Biafra até Cabo Delgado, do coltan (columbite-tantalite) no Congo passou-se ao colonialismo verde (criação de parques de conservação em detrimento das populações, na Etiópia, Quênia, África do Sul…) e agora, com Palma e Mocímboa da Praia, inaugurou-se uma nova fase: expulsar a ex-boa gente (doravante irrelevante e incómoda) das boas terras.
O filósofo guineense Filomeno Lopes, pergunta-se, «e se a África desaparecesse do mapa do mundo?» A questão é outra, a África é fundamental para o equilíbrio ecológico do planeta, ela contém recursos necessários para o desenvolvimento tecnológico. O problema com a África são os africanos; à parte aqueles poucos necessários ao sistema liberal, não se sabe é o que fazer com eles. Até o banimento do Sul do continente não tem a ver com a nova variante -mícron- do vírus – essa já estava presente em todo o lado – mas com a variante africana do homem sapiens. Contrariamente à seleção natural de Darwin (à espera da separação definitiva pela inteligência artificial), a sociobiologia de Wilson – e outros eugenismos – ou as outras pandemias (cólera, malária, tuberculose, HIV, guerras, fome) a Covid parecia, enfim, capaz, de quebrar a resistência dos africanos em continuar a sobreviver. Mas porque esse COVID – socialista e terceiro-mundista – não infectava suficientemente os africanos, tinha que se encontrar uma maneira de os afectar. A honestidade científica e moral sul-africana foi a ocasião que favoreceu, pretextualmente, o empurrar a fronteira antropológica mais para o Sul, sem ter que se recorrer à complicação do proibicionismo dos vistos nos consulados, aos calabouços e à nova escravatura no maghreb, financiados em euros, ou aos afogamentos no Mediterrâneo que transformaram o mare nostrum dos romanos em morte nostrum da liberal, democrática e humanista União Europeia.
Como Joséphine Baker, outra afro-estrela sobe mais um degrau na consideração da realeza: Lewis Hamilton acaba de receber, das mãos do príncipe Carlos, o título de Cavaleiro da Ordem do Império Britânico (os impérios ainda existem). Se juntarmos o Nobel da literatura (Abdulrazak Gurnah) e o prémio Camões (Paulina Chiziane), temos a totalidade do paradoxo de 2021 africano: fausto em premiações, guerras e fome, parco em comida, paz e vacinas.
Aqueles de entre nós que pensavam ser macacos superiores, que pensavam que os dólares que depositaram em Abu Dhabi, na Suíça ou nos off shores, os elevariam – como acontecera sempre com os cúmplices da escravatura e/ou do colonialismo – no momento da verdade foram redimensionados e confinados na sua/nossa, insignificância das manjedouras do nosso natal sob o sol, sem neve, como tinha acontecido com Jesus.
O filósofo Ezio Buono (Muntuismo) viu no BHELA KU NYUMBANI o símbolo da hospitalidade dos africanos; Alcido Cumaio considerou-o uma especificidade dos moçambicanos. Seja como for, acolhendo e hospedando Vasco da Gama e a sua turba de maltrapilhos, deixámos entrar feiticeiros dentro de casa. Aí reside o conflito de amores entre o Eros e o ágape que perseguem o ser humano e complicam as relações entre homens, histórias e culturas.
Lapsos, enganos, equívocos são humanos mas quando eles se repetem, diabolicus sunt. De todos os equívocos o mais dramático é que continuamos a perpetuar, sem a devida prudência, o nosso BHELA KU NYUMBANI; o nevoeiro da Mozal que não deixa os habitantes da Matola usufruir do sol, com chineses que esvaziam os nosso mares e abatem as nossas florestas, ruandeses que protegem interesses franceses e empurram a guerra para outras províncias, FMI e BM que hipotecam o país, comunidade internacional que semeia discórdia entre os moçambicanos.
Contrariamente às teses de Nietzsche Eros e Ágape não são amores incompatíveis, como não são incompatíveis o Natal e a Festa da Família. Aliás ambas exigem um BHELA KU NYUMBANI para lhes dar sentido. Se esses Reis (não) magos, de fora e de dentro, olharem com simpatia os jesuses que dormem nas ‘manjedouras’ pelo Moçambique fora, talvez possamos, juntos, fazer natal. Como outrora os jesuses não querem ouro, incenso ou mirra, esses pobres cristos, como lázaros, se contentam com um pouco de migalhas e um pouco de paz e tranquilidade. É pedir demais?
Em nome do ágape, mas desta vez, sem a ingenuidade das falsas prendas de natal (como aeroportos...) de velhos e novos bustanis, vamos continuar, fortes em nós mesmos (Mac Kay), a escancarar portas, janelas, grades e corações a todo o passante em busca de uma fraternidade humana, para além dos imperialismos e das intolerâncias. Atenção a quem recusamos deixar entrar, Jota C, em fuga dos Herodes do mundo, e Marx na busca da solidariedade entre trabalhadores, podem estar escondidos por detrás desses indigentes do nosso povo, a quem não deixamos passar (Noémia de Sousa).
Não temos que acolher o outro porque é natal/festa de família, é o acolher o outro que torna o natal/festa de família possível!
BHELA KU NYUMBANI
Severino Ngoenha, Carlos Carvalho
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