- Severino Ngoenha
- Posts
- Estéticas de resistência
Estéticas de resistência
O que o dinheiro não pode comprar
A Pente Fino, é o titulo da exposição em curso no Centro Cultural Franco Moçambicano, de um dos maiores fotógrafos moçambicanos, Filipe Branquinho, com a curadoria de outro grande fotógrafo, Mauro Pinto e com textos de António Cabrita.
Do debate da função da arte negro no Black Rennaissance (Du Bois, Alain Locke, Claude Mackay) passando pelas controvérsias do significado da arte negra (de Senghor a Craveirinha) até ao(s) hodierno(s) afrofuturismo(s) -tela, romance, música, dança, fotografia- a(s) arte(s) africana(s) - e a moçambicana não foge a regra -, caracteriza(m) -se por um rememorar a tragédia do passado, questionar normas sociais vigentes e antecipar/prospectar futuros desejáveis e/ou possíveis. Não foram só - no pretérito - Katini e Kuomocomo que com os Timbilas que questionaram a interferencia colonial na cultura (Hugh Tracey), os Craveirinhas, as Noémias que reivindicaram a pertença a um país que ainda não era (Lutar por Moçambique); Chissano com cabeças sem orelhas, o o Tschova e a Musart que romperam com os cânones da estética revolucionária. Num passado recente, escultores como Fiel e Mabunda - contra o domínio da violência e da guerra - transformaram as armas em obras de arte; com a descoberta das dívidas ocultas, pintores como John Fornasini, António Costa e Victor de Sousa denunciaram nos seus quadros, os conluios da delapidação por parte daqueles que eram supostos proteger o bem comum; os curadores Hélia Gemusse, Rafael Mouzinho e Ventura Mulelane - em Novembro de 2018 - organizaram no Musart (Museu nacional de arte) uma exposição com o título sugestivo, Reimaginar a Nação, que revela de chofre, a preocupação dos museólogos com a debandada do país. Face a pecunocracia reinante, o Rap do Azagaia não cessou de se erguer contra os lesa pátrias e os vampiros do sangue do povo e, com a sua actual exposição, Branquinho se levanta – hirto -, contra divinização do dinheiro na nossa sociedade.
Depois de ter denunciado numa exposição precedente (In Gold We Trust) o dinheiro totem, desta feita/vez, o artista sugere formas de resistência contra a sua elevação a facto social total: Igrejas onde reina a teologia da prosperidade, política do cabritismo em que altos funcionários encarregues de defender os interesses do estado preocupam-se, in primis, com as suas percentagens, liberadores que afirmam - sem papas na língua-, que lutaram (e os novos militam) para ser ricos, parlamentares que nunca se entendem sobre nada, mas sempre concordes quando se trata de aumentar o próprio salário e os seus benefícios...
O histórico da numismática (Museu da Moeda) em Moçambique compreende a circulação de diferentes moedas, algumas delas ao mesmo tempo. Antes do Metical circularam o Mithqal de origem árabe, Libras Esterlinas cunhadas por companhias majestáticas, Reis e Escudos cunhadas pelo Banco Nacional Ultramarino porém, estás nunca suplantaram ou destronaram o ethos antropológico da troca, da primazia ética da gratuidade (Mauss) e as filosofias Ubuntu de solidariedade.
O hodierno estatuto material, intelectual e moral do dinheiro, modificou as mentalidades, redefiniu as elites, penetrou nos espaços outrora protegidos da política, da cultura, da vida afectiva, transformou/mercantilizou as relações sociais e fixa um preço para valores (axiologia) até aqui considerados sem preço e não mercantilizáveis (dignidade, honra, amor, família, pátria…). O dinheiro deixou de ser um meio para alcançar e realizar objectivos e telos humanos e tornou o escaton/objetivo das nossas vidas e ações.
Desde o seu aparecimento (as primeiras moedas pareceram em Lydie, na Asia menor no VII século antes de Cristo) houve sempre uma certa suspeita - religiosa e filosófica -, em relação ao dinheiro. De Platão a Marx, passando por Santo Agostinho, muitos filósofos e padres da Igreja mostraram-se cépticos e adversos ao dinheiro. Do lado da filosofia, o contencioso é originário; Sócrates, cujo ensino era gratuito e desinteressado, se apresenta em oposição a figura venal do sofista, que vende a sabedoria, como se a verdade (aletheya) pudesse ter um preço e fosse propriedade daquele que ensina. Aristoteles dirá ainda com mais clareza que entre o saber e o dinheiro, não existe nenhum meio termo (Ética a Eudemo); não se pode quantificar nem monetizar o saber. Vinte cinco séculos depois, Flaubert dirá no mesmo sentido que, “o meu serviço permanece infinito e de consequência impagável”; uma obra de arte não tem um valor comercial e, por isso, não se pode pagar (Carta a George Sand, 1872).
Na Politica, Aristoteles opõem a troca de bens primários de uma economia doméstica a crematística - a arte de acumular dinheiro pelo dinheiro. O dinheiro tem tendência a se destacar da economia real e desenvolver, através de empréstimos com interesses - lucros especulativos. Para o Estagirita, o poder do dinheiro - que não é limitado as necessidades -, risca de fazer sair o desejo humano da sua órbita natural, a favor de uma busca desregrada e sem fim.
O cristianismo empresta a Aristoteles um outro argumento, o dinheiro improdutivo em relação a natureza e ao trabalho, quando é emprestado não merece um salário, o que leva a rejeição do empréstimo com interesses, por conduzir a usura. A igreja condena no banqueiro uma forma de usurpador: ele hipoteca o tempo, que só pertence a Deus.
Para a modernidade o tempo é dinheiro. Os filósofos modernos, Espinosa e Adam Smith, dedicaram-se a promover um novo modo de relações sociais fundados sobre o interesse, invés que sobre os grandes desígnios políticos; sobre o espirito mercantil invés que sobre o espirito aristocrático. As antigas paixões políticas (busca de honra, do poder e da glória), tendo acabado por precipitar os príncipes e os seus estados em conflitos sem fim, os filósofos procuram uma paixão compensadora. A antiga concupiscência foi assim reabilitada, por ser uma paixão capaz de neutralizar o apelo de todas as outras, trazendo racionalmente o indivíduo a seu próprio desejo.
Ao contrário das violências que desencadeia o livre jogo das paixões políticas, as actividades ditadas pelo interesses são previsíveis, constantes e produzem um comércio doce. É assim que as relações mercantis fundam uma nova polis, a sociedade do mercado que, por sua vez, não é isenta das suas próprias patologias (Montesquieu).
Segundo Marx, o dinheiro afecta as nossas relações com os outros e com o mundo. No manuscrito econômico e filosófico de 1844, ele qualifica o dinheiro de instrumento de alienação universal, capaz de transformar a natureza humana.
Para o filósofo americano Michel Walzer (Esferas da Justiça), toda a sociedade pode ser considerada como uma comunidade distributiva que reparte diferentes bens mercantis (salário, serviços, patrimônio) e não mercantis (cidadania, funções públicas, conhecimentos...). Cada um destes bens é distribuído segundo critérios de equidade especifica: pode se sair vitorioso num tipo de bens e derrotados num outro. O que se deve evitar a todo o custo, são os fenómenos de predominância e de conversão em que, um grupo que tem o monopólio numa esfera, se apodera dos bens de uma outra esfera, a quem ele impõe os seus critérios de avaliação e os seus critérios de distribuição. Mas não é o que esta a acontecer com a esfera do dinheiro que manipula a totalidade das transações sociais? Como diz Marcel Henaff, ele tem o poder de traduzir todos os valores e lhes conferir um preço (Le Prix de la Vérité).
Contudo, contra esta tendência, Walzer defende que as sociedades devem reafirmar, permanentemente, a distinção entre a esfera mercantil e a grandeza, que escapa a toda a mercantilização: a liberdade, o saber, as funções/encargos públicos, a justiça, o amor, etc.
No Moçambique da segunda República, o dinheiro transformou-se num totem. O dinheiro levou-nos a uma tendência de auto suficiência e perdemos o hábito de contar com a família ou sobre os outros/amigos. O dinheiro encorajou o individualismo e prejudicou a implicação na sociedade. A razão teve sempre como seu fim último o conhecimento, a que serve o dinheiro senão a vontade nietzscheana de poder? O filósofo Georg Simmel (filosofia do Dinheiro, 1900) pintou quatro quadros retóricos do relacionamento humano com o dinheiro: o avarento, o pródigo, o cínico e o ascético. Em qual delas se revê cada um de nós?
O avarento é uma das figuras que melhor incarnam a fascinação face ao todo poderoso dinheiro. Permitindo-nos adquirir todos os objectos de valor, o dinheiro é o meio absoluto, é o único objecto que pode ser trocado contra tudo. Aos olhos do avarento, o dinheiro adquire um valor superior em relação aos bens que ele permite obter pois, contrariamente aos objectos singulares que só são o que são, o dinheiro abre todos os possíveis. Porém, não gastando o seu dinheiro, o avarento condena-se a nunca gozar dos valores concretos; é também para ele também um meio de não escolher e de não se livrar ao exercício, muitas vezes doloroso, da liberdade. Em definitiva, o avarento inclina-se diante de um novo ídolo, a quem ele abandona a própria liberdade.
O pródigo é para Simmel o mais esbanjador/dilapidador. A seus olhos, o dinheiro pode tudo, permite tudo, dá tudo. O pródigo mete em prática a sua liberdade infinita, passando o seu tempo a gastar. O objecto que ele compra - muitas vezes de luxo - é só um pretexto, o que conta é gastar. Ele tem tanta necessidade do dinheiro quanto o avarento, não para economizar, mas para gastar. Invés de livre o pródigo é, de facto, escravo do exercício dessa liberdade.
O Cínico está convencido que não há outros valores uma vez que, pelo viés do dinheiro, tudo é comensurável. O dinheiro é o grande igualizador que reduz os valores mais altos, como os mais baixos, a uma única forma de valor. Na Filosofia do Dinheiro, Simmel explica que as bolsas de valores seriam os lugares propícios ao cinismo, o que pode bifurcar e se cruzar com a figura do especulador contemporâneo, que manipula valores flutuantes e grandes quantidades de dinheiro desmaterializados, sem nenhum equivalente concreto.
O ascético desborda o simples domínio do religioso, ele define-se pelo ideal elevado (felicidade, sabedoria, nirvana...) que tenta atingir. Ele afasta-se das distrações materiais que o podem levar a afastar-se do essencial, a sua relação com o dinheiro é de receio e/ou aversão, uma vez que - este grande tentador -, pode-o afastar do bom caminho. O Decrescimento (Serge Latouche) é apostrofado, erradamente (Jean-Joseph Goux), como uma espécie de ascetismo.
A exposição de Branquinho nos escancara/desvela o cancro que corrói a nossa sociedade, cujas metástases são o individualismo, as discrepâncias sociais, a corrupção e a violência. Dupla violência, porque a pobreza e as desigualdades são já, de per se, violência. A trágica consequência desta doença trágica, é o enfraquecimento do sentimento de nação, a falência do Estado e o retrocesso da soberania.
Como forma de resistência ao dólar-rei e a ideologia da utilidade, a exposição "A Pente Fino", nos propõem uma resiliência através de gestos mínimos que reforçam as identidades e a busca contínua de valores que não têm preço. O apelo do artista é sobre a necessidade daquilo que o filosofo José Viegas chamou transmutação de valores; a ousadia de reverter o nosso pecuniocratico panteão axiológico e colocar no cimo da nossa pirâmide Leibniziana, os valores da solidariedade, da verdade e do saber. É a preço desta comunhão (cum munia) que se ergue uma pátria e se constrói uma nação.
É a este desígnio, da Utilidade do Inútil (Nuccio Ordine) e de valores sem preço, que as artes - busca e preservação do belo e da verdade (Walter Benjamim)- e a filosofia -busca do bem e da justiça -, são chamadas a ser instrumento.
Reply