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Metáforas do Natal: Herodes, os Magos e a Metanóia que Moçambique Adia

O Natal não é uma data. É uma fissura no tempo. É o instante em que a vida se anuncia frágil - uma criança recém-nascida - e, porque é vida, provoca imediatamente duas reações humanas fundamentais: o medo e a celebração.

O medo é o de Herodes; a celebração é a dos Magos. Estas duas retóricas atravessam a história e continuam a organizar o nosso presente político, social e económico.

Herodes representa o poder que teme a vida. Teme o futuro. Teme qualquer possibilidade de transformação que não possa controlar. O seu medo transforma-se sempre em eliminação. Os Magos representam a coragem de reconhecer o nascimento da vida - mesmo quando ela surge fora das estruturas oficiais, mesmo quando é humilde e vulnerável. Os Magos deslocam-se para acolher a vida; Herodes mobiliza exércitos para a sufocar.

O Natal, enquanto metáfora filosófica, é isto: a escolha entre eliminar a vida ou celebrá-la. E essa escolha repete-se todos os dias em Moçambique.

Todas as grandes civilizações que celebraram o Natal celebraram-no sobre cadáveres: escravos, indígenas, colonizados, migrantes, trabalhadores expropriados. Nova Iorque, Chicago, Joanesburgo, Londres, Lisboa - ergueram a sua grandeza sobre vidas sacrificadas. A violência estrutural não é exceção; é a fundação.

Mas não precisamos de ir longíssimo. As pirâmides africanas, por mais gloriosas, foram erguidas com trabalho forçado. Muitas catedrais europeias e igrejas africanas - inclusive as nossas, a Catedral de Maputo, a Polana - repousam sobre histórias de sacrifício humano.

É fácil acusar o Ocidente. É fácil acusar os colonizadores. Mais difícil é reconhecer que também as nossas independências criaram impérios internos que continuam a erguer riqueza em cima da vida dos pobres.

Hoje, no Moçambique independente, continuamos a ver:

  • crianças sacrificadas em minas ilegais;

  • jovens esmagados por sistemas económicos que só funcionam para elites;

  • deslocados que perdem as suas terras para projectos económicos obscuros;

  • camponeses que morrem de fome apesar de viverem sobre terras férteis;

  • hospitais sem medicamentos enquanto redes clandestinas lucram com a dor;

  • estradas assassinas construídas com orçamentos milionários;

  • dívidas ocultas que condenam gerações inteiras.

Herodes não desapareceu. Apenas mudou de morada.

Muitas vezes vive no interior das nossas instituições.

Outras vezes, do lado de dentro da nossa própria pele.

A perversão moderna é que até o Natal - que simboliza o nascimento da vida - foi capturado por mecanismos de mercado que continuam a perpetuar desigualdades. São Nicolau, o Pai Natal, as prendas, tornaram-se dispositivos de um capitalismo global que fabrica desejos e esvazia consciências.

As grandes cidades competem pelas luzes mais brilhantes, pelos presépios mais grandiosos, pela decoração mais cara.

Mas não competem por diminuir a fome.

Não competem por reduzir a mortalidade infantil.

Não competem por melhorar a vida dos seus pobres.

O presépio de São Francisco de Assis foi criado para lembrar a humanidade do essencial: o nascimento da vida no meio da pobreza. Mas hoje o presépio tornou-se apenas mais um objeto de consumo. Entre Paris e Nova Iorque, entre Roma e Dubai, ilumina-se tudo - menos a consciência.

E Moçambique imita esta lógica. As nossas elites importam a estética do Natal, mas não o seu imperativo ético.

Temos luzes nas avenidas e escuridão na ética pública.

Temos festividades importadas e ausência de responsabilidade social.

Temos igrejas cheias e Estados vazios de consciência.

Enquanto alguns imitam Herodes com naturalidade, há Magos silenciosos que sustentam o país. São esses que, apesar de tudo, continuam a celebrar a vida:

  • as mães que caminham quilómetros com crianças às costas para buscar água;

  • as mulheres muqueristas que enfrentam fronteiras para trazer pão para casa;

  • os jovens que limpam carros por sobrevivência;

  • os camponeses que insistem na machamba sem apoio nem proteção;

  • os trabalhadores das periferias que constroem a economia invisível que sustenta Maputo.

Eles são os verdadeiros guardiões do Natal.

Os únicos que, ainda hoje, celebram a vida sem esperar nada em troca.

Vivemos num planeta onde a lógica de Herodes se tornou global.

Os palestinianos e os ucranianos pagam com vidas por territórios que nunca lhes pertenceram; os venezuelanos e sudaneses sobrevivem em países onde o poder se alimenta do sacrifício humano; o Congo continua a sangrar para alimentar a riqueza mineral do mundo digital.

E Moçambique não está fora deste mapa.

Cabo Delgado é o nosso presépio profanado.

As famílias deslocadas são as crianças ameaçadas por Herodes.

E muitos de nós, elites urbanas, somos cúmplices pela indiferença, pelo silêncio, pela ingenuidade ou pelo benefício próprio.

A pergunta filosófica é brutal: como celebrar o Natal num país que normalizou o sacrifício humano?

Pode-se contornar tribunais.

Pode-se manipular relatórios.

Pode-se comprar silêncio.

Mas não se pode fugir da consciência.

O Natal é, antes de tudo, um tribunal interior.

E nesse tribunal não há advogados, não há esquemas legais, não há imunidade parlamentar.

Cada gesto, cada assinatura, cada desvio, cada cumplicidade tem voz.

Moçambique vive numa época de dupla consciência:

  • uma consciência pública, de aparência ética, de discursos moralizados, de ofertas à igreja, de caridade teatral;

  • e uma consciência interna, obscura, profundamente cínica, onde tudo é permitido se servir interesses pessoais.

Peter Sloterdijk descreveu esse cinismo com precisão:

saber o que é errado e continuar a fazê-lo.

Este cinismo tornou-se a religião oficial das elites moçambicanas.

O Natal não exige festa. Exige transformação.

Não exige luzes. Exige consciência.

Não exige presépios. Exige verdade.

Metanóia significa virar-se de dentro para fora.

Rasgar a dupla consciência.

Assumir a vida como o valor absoluto que nenhuma ambição política, nenhum negócio secreto, nenhum privilégio pode sacrificar.

Se Moçambique quiser celebrar o Natal de verdade, terá de romper com o cinismo estrutural das suas elites.

Terá de deixar de imitar Herodes.

Terá de reconhecer e honrar os seus Magos.

Sem isso, o Natal não passa de um ritual vazio, uma vitrine luminosa sobre um país que continua a morrer nas margens, nos postos de saúde, nas estradas, nas minas, nas escolas sem carteiras, nos bairros sem água.

O Natal pergunta-nos, a todos, mas sobretudo às elites deste país: vocês estão ao lado de Herodes ou dos Magos? Sacrificam vidas ou protegem-nas? Vivem do país ou para o país?

Não há neutralidade.

Se não houver metanóia, se não houver conversão ética profunda, então o Natal em Moçambique será apenas mais uma celebração do nosso cinismo coletivo.

Se houver metanóia, então o Natal pode finalmente ser o que deveria ser: um lugar onde a vida, mesmo a mais pequena, torna-se mais importante do que o poder.

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