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Moçambique, 50 anos de turbulência
Em junho de 1975, nascia uma nação independente.
Em junho de 1975, nascia uma nação independente. Moçambique surgia no concerto das nações como um novo actor político, herdeiro de uma longa luta armada de libertação, alimentada pelo sacrifício de gerações e pelo apoio incondicional de países irmãos, como a Tanzânia. Foi precisamente Julius Nyerere, o primeiro estadista estrangeiro a pisar o solo moçambicano livre, quem nos advertiu, num discurso memorável, que Moçambique estava no mar alto, liberto sim, mas ainda longe de ter alcançado os objetivos pelos quais o povo lutara.
Essa imagem do “mar alto” tornava-se profética. A independência política, celebrada com entusiasmo, abria uma nova etapa – mais difícil e exigente – que consistia em dar corpo ao sonho de uma nação: alfabetizar um povo com 95% de analfabetos, curar doentes sem médicos nem enfermeiros, alimentar um povo faminto sem agrónomos nem maquinaria, e construir um Estado moderno com quadros ainda por formar. A liberdade política confrontava-se com a indigência material.
A nossa independência nasceu num território geopolítica e historicamente minado. Os vizinhos imediatos, como o Malawi e a então Swazilândia, tinham pretensões territoriais não resolvidas. A África do Sul racista via com hostilidade o exemplo de um país governado por negros, e a França vigiava silenciosamente o canal de Moçambique. O imperialismo colonial não terminara com a proclamação da independência; apenas mudara de formas e táticas.
Moçambique situava-se, ainda, na encruzilhada da Guerra Fria. Os nossos aliados naturais, os países não-alinhados, pretendiam manter-se à margem do conflito entre os dois blocos, mas a realidade impôs-nos escolhas. Sem apoio da NATO durante a luta, o caminho para o socialismo tornou-se inevitável. Pagámos caro por essa escolha obrigada.
Em menos de seis meses de independência, Moçambique mergulhava em nova guerra. A independência, antes mesmo de ser consolidada, foi atacada. Xikwalakwala, Mapai, como depois Satungira e Muxúnguè, tornaram-se geografias de dor. O país foi tomado por uma longa guerra que durou dezasseis anos – uma guerra mais longa, mais destrutiva e mais fratricida do que a própria guerra de libertação.
Essa guerra Mocambique martirizado perdeu. A FRELIMO perdeu porque, cercada em todas as províncias, não conseguiu manter a paz e o controlo do Estado. A RENAMO perdeu porque não atingiu o poder. No final, em Roma, não assinámos a paz: assinámos a rendição, disfarçada de acordo. Aos vencidos não se pede opinião. Os vencedores anónimos impuseram-nos o desmantelamento da nossa defesa, a abertura ao liberalismo, e a criação de uma elite económica artificialmente engendrada.

Com o tempo, a paz formal revelou-se uma trégua instável. O fogo acalmou, mas as brasas nunca se extinguiram. Rebeliões armadas voltaram, manifestações populares irromperam, e uma nova ameaça emergiu no norte do país: o jihadismo em Cabo Delgado. Hoje, esse conflito alastra para outras províncias, tornando ainda mais evidente que a paz nunca se consolidou.
Os últimos cinquenta anos não nos deram um só momento de tranquilidade cívica, em que o povo moçambicano, sem medo nem pressões, pudesse escolher o seu destino comum. Vivemos em estado de turbulência permanente, entre guerras declaradas e violências silenciosas, entre alianças externas impostas e uma democracia por cumprir.
Temos que reconhecer, com honestidade e coragem, que Moçambique travou duas guerras. A primeira vencemo-la com honra, a segunda perdemo-la com dor. A independência foi uma conquista. A paz, até hoje, continua um projeto inacabado.
No cinquentenário da independência, devemos deixar de lado as autocelebrações vazias e encarar o nosso passado com um espírito crítico e reconstrutivo. A pergunta que nos persegue permanece: quem ganhou a guerra de 16 anos? Nem o povo, nem os partidos, nem a nação. Ganharam os interesses estrangeiros que nos forçaram a render-nos. E se não compreendermos isso, os próximos cinquenta anos serão apenas a repetição trágica do mesmo ciclo de turbulência.
Continuamos, ano após ano, a proclamar que ganhámos a guerra e que vivemos cinquenta anos de independência desde o fim do colonialismo português. Mas essa proclamação, repetida como dogma, interroga os jovens moçambicanos. Eles olham à sua volta e perguntam, com razão:
Como é que em cinquenta anos não construímos um sistema educativo sólido? Como é que continuamos sem médicos suficientes, sem hospitais equipados, sem uma infraestrutura decente, sem um modelo de desenvolvimento que garanta a soberania alimentar e a dignidade económica?
Estas perguntas não são simples manifestações de impaciência juvenil. São perguntas legítimas. Elas expressam a desilusão perante uma independência que prometeu libertação, mas que não foi capaz de transformar a liberdade política em justiça social e progresso material. Mas essa incompreensão dos jovens não se deve apenas à sua juventude. Deve-se também ao nosso silêncio, à nossa incapacidade coletiva de dizer-lhes que estes cinquenta anos não foram cinquenta anos de paz. Foram cinquenta anos de turbulência, de guerra contínua, de instabilidade programada.
Por outro lado, precisamos distinguir duas experiências do tempo: o tempo biográfico e o tempo histórico. Para um indivíduo, cinquenta anos pode representar a maturidade, a realização profissional, a consolidação de uma vida. Mas para um país, cinquenta anos é pouco. É ainda o tempo da infância política. A história das nações é feita de longas durações, de processos que ultrapassam gerações, que resistem às revoluções e sobrevivem às guerras.
A comparação com a Europa histórica é necessária para relativizar. A Espanha, unificada em 1492 por Isabel de Castela e Fernando de Aragão, ainda hoje luta com os nacionalismos catalão e basco. A França, que se proclama herdeira de Clóvis desde o século VI, ainda enfrenta crises de identidade nas suas regiões periféricas e nas suas antigas colónias. A Alemanha só se unificou em 1871, a Itália também – e mesmo assim, o seu sul continua à margem do desenvolvimento do norte. A Polónia desapareceu e reapareceu várias vezes no mapa da Europa. Portugal, que afirma ser Estado desde o século XII, continua a negociar a autonomia dos Açores e da Madeira.
Estas nações, que hoje nos parecem antigas e consolidadas, precisaram de séculos para se tornar o que são. Como podemos exigir de Moçambique, nascido há apenas cinquenta anos, ferido por guerras, sabotado economicamente, infiltrado por interesses estrangeiros e por debilidades internas, que atinja, em tão curto espaço de tempo, a maturidade que outros demoraram séculos a alcançar?
Mas esta constatação não deve servir como desculpa para a inércia. Pelo contrário. Reconhecer que o tempo histórico é longo é também reconhecer que o presente exige decisões. Que este momento, o cinquentenário da independência, deve ser uma ocasião de ruptura simbólica com as narrativas glorificadoras e com as práticas autodestrutivas. Chegou o tempo de fundar uma nova gramática política, social e económica para o país.
Não se trata de rejeitar o passado, mas de compreendê-lo com lucidez. A independência foi real e merece ser celebrada. Mas a construção de uma nação ainda não terminou. E só terminará quando os jovens moçambicanos puderem olhar para o futuro com confiança, quando deixarem de perguntar, com amargura, o que fizemos com a liberdade que herdámos.

Após os Acordos de Paz de Roma, Moçambique foi compelido a rever a sua constituição. Não se tratou apenas de uma reforma, mas de uma verdadeira refundação constitucional que pretendia acomodar os princípios do pluralismo político, do liberalismo económico e do novo credo democrático imposto pelo pós-Guerra Fria. A nova constituição foi apresentada como conquista da soberania, mas era, de facto, resultado de pressões externas.
Internamente, a liderança de então, sobretudo no seio da FRELIMO, nunca esteve verdadeiramente convencida da virtude dessa democracia importada. Percebia-a como um mecanismo de desestruturação da revolução, como uma imposição do inimigo derrotado que agora regressava pelas vias diplomáticas e económicas. A democracia foi aceita formalmente, mas combatida internamente.
A FRELIMO, naquele momento, aceitou o pacto liberal — a abertura de mercados, a privatização do Estado, a criação de uma burguesia nacional — mas bloqueou sistematicamente o acesso real da oposição ao poder. A pergunta que me acompanha desde então é esta: essa ambiguidade foi uma forma de resistência legítima a uma nova colonização disfarçada ou foi o momento em que o partido abandonou os seus próprios ideais e se integrou no sistema que dizia combater?
No meu livro A Terceira Questão, já anunciava essa inquietação. Hoje, as evidências são dolorosamente claras: uma oligarquia política e económica apoderou-se do aparelho de Estado. Uma nova burguesia de Estado nasceu dos escombros da justiça social. Moçambique tornou-se o sétimo país mais desigual do mundo. A luta já não é entre colono e colonizado, mas entre moçambicanos que têm tudo e moçambicanos que nada têm.
O mais grave da viragem liberal não foi apenas a abertura dos mercados nem a privatização dos bens públicos. O mais grave foi a destruição do contrato social que sustentava o projeto nacional. Perdemos o princípio de igualdade que inspirou os combatentes da luta de libertação. Esquecemos os valores de justiça que deram sentido ao sacrifício. O nacionalismo transformou-se em clientelismo. A soberania virou retórica.
Hoje, muitos dos que comandam o país já não têm compromisso com a promessa da independência. São gestores de interesses. Usam a linguagem da libertação para legitimar privilégios. A justiça foi substituída por redes de proteção mútua. E a juventude, sem oportunidades, afunda-se na desilusão e no exílio.

Estamos agora de regresso ao Estado da Machava. E é bom que assim seja. Mas este regresso não deve ser para festejar. Não devemos comemorar. Comemorar é cantar vitória, é dançar em celebração. Mas o que a nossa história exige é rememoração. Rememorar é fazer memória, é pensar profundamente. É escavar o tempo com a pergunta: que fizemos com a liberdade que conquistámos com armas na mão e esperança no coração?
Rememorar é recordar que a luta nasceu contra o racismo, a opressão, a exploração. Que a promessa era de justiça, de igualdade, de um país onde todos teriam um lugar digno. Onde não haveria mais crianças forçadas a emigrar. Onde não haveria moçambicanos humilhados em terras alheias. Onde a morte no Mediterrâneo ou a escravidão moderna não seriam destinos possíveis.
Rememorar é ouvir Samora Machel quando dizia: “Nunca esquecer o tempo que passou.” Mas não apenas o tempo de opressão: também o tempo de promessa. Porque a história não é só memória de sofrimento; é também lembrança do compromisso.
Moçambique não precisa apenas de desenvolvimento. Precisa de reencontrar o seu pacto fundador. O seu contrato social. A promessa não foi de crescimento económico para alguns. Foi de dignidade para todos. O 25 de junho deve ser o momento em que, como povo, paramos para perguntar se ainda somos herdeiros dessa promessa — ou se a traímos.
Fazemos cinquenta anos. Mas não há paz onde há desigualdade extrema. Não há independência onde há exclusão. Não há liberdade onde o medo domina, onde a juventude foge, onde o povo morre sem assistência.
É tempo de um novo engajamento. De uma nova promessa. Que Moçambique seja, finalmente, o país onde todos tenham o seu lugar. Eis o verdadeiro sentido do 25 de Junho.
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