- Severino Ngoenha
- Posts
- Moçambique diante do espelho da Serra Leoa
Moçambique diante do espelho da Serra Leoa
Quero dizer com toda a clareza: o povo falou entre outubro e março. E falou de pobreza e desigualdade, mas também de uma humilhação silenciosa.
Carta ao Professor Severino Ngoenha
Caro Professor Ngoenha.
Como moçambicano atualmente em missão académica na Serra Leoa, nação da África Ocidental, encontro-me a refletir profundamente sobre os paralelos entre os nossos dois países. Hoje assinala-se o meu trigésimo dia em Freetown, a capital, e estou com uma forte tentação de comparar as realidades socioeconómicas e políticas de Moçambique e da Serra Leoa. Ambas as nações enfrentam desafios que ecoam uma à outra de maneiras reveladoras, mas cada uma oferece lições que a outra poderia ouvir - se ao menos houver a vontade coletiva de evitar repetir os erros da história. Tendo em conta a atual situação de Moçambique, acredito que há muito que podemos aprender com a experiência da Serra Leoa.
Legados históricos e estruturais
O deslize da Serra Leoa para a guerra civil em 1991 não começou no vácuo. Após a independência, em 1961, sucessivos regimes transformaram o Estado num veículo de acumulação predatória, clientelismo e extração (Abdullah, 2004). Sob Siaka Stevens (1968-1985), as instituições foram esvaziadas: os fundos públicos foram desviados, as burocracias tornaram-se máquinas de mecenato e os serviços sociais entraram em colapso (Reno, 1995). No final da década de 1980, o governo não podia mais pagar salários, e a educação se deteriorou (Kandeh, 1992). Enquanto isso, a riqueza diamantífera, controlada por elites e corporações estrangeiras, criava queixas e financiava a mobilização rebelde. Quando a Frente Revolucionária Unida (RUF) lançou a sua insurgência em 1991, aproveitou a raiva pública contra a exclusão e a desigualdade (Richards, 1996).
A trajetória de Moçambique, embora distinta, apresenta semelhanças estruturais. Após a independência em 1975, a FRELIMO herdou uma economia fraturada e embarcou num projeto socialista que vacilou sob as pressões da Guerra Fria (Hanlon, 1991). A guerra civil (1977-1992) entre a FRELIMO e a RENAMO devastou infraestruturas e aprofundou divisões regionais (Isaacman & Isaacman, 2013). Após o acordo de paz de 1992, as reformas neoliberais levaram ao crescimento, mas também à desigualdade e à captura das elites (Pitcher, 2002). O escândalo das "dívidas ocultas" de 2013-2016 - empréstimos secretos garantidos pelo Estado de mais de US$ 2 bilhões - precipitou a crise fiscal e a retirada de doadores (Zandamela, 2020). Ambos os países carregam, portanto, legados de extração, instituições fracas e desenvolvimento desigual.
Juventude, desigualdade e exclusão social
O conflito da Serra Leoa foi alimentado por uma geração de jovens desiludidos. O colapso da educação e do emprego formal deixou milhares de pessoas alienadas e desempregadas, criando um terreno fértil para o recrutamento de rebeldes (Peters, 2011). A reconstrução do pós-guerra expandiu o acesso à educação e criou a Comissão da Verdade e Reconciliação (TRC), mas a desigualdade persistiu (TRC, 2004).
Moçambique enfrenta hoje uma pressão demográfica semelhante: quase metade da sua população tem entre 15 e 29 anos (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento [PNUD], 2022). O desemprego juvenil é superior a 40% e a pobreza continua generalizada (Banco Mundial, 2023). Nas províncias do Norte, a combinação de tensão religiosa, exclusão econômica e falta de oportunidades levou os jovens a insurreições extremistas (Morier-Genoud, 2020). Orre e Forquilha (2023) observam que esquemas de emprego mal desenhados reforçam as perceções de captura do Estado. Ambos os contextos revelam como os jovens negligenciados podem tornar-se catalisadores da instabilidade social.
Capacidade do Estado, corrupção, legitimidade e confiança
Antes da guerra civil, a Serra Leoa sofria de colapso institucional e corrupção generalizada. O Estado, competindo com caciques tradicionais, era visto como extrativista (Reno, 1995). A criação da Comissão Anticorrupção em 2000 melhorou a supervisão, mas a corrupção continua generalizada (Transparência Internacional, 2023). Apesar dos ganhos do pós-guerra, o contrato social continua frágil (BTI, 2022). Em Moçambique, a corrupção tornou-se igualmente sistémica. Entre 2002 e 2014, as perdas com a corrupção foram estimadas em quase US$ 5 bilhões (Nuvunga, 2019). O escândalo das dívidas ocultas demonstrou conluio da elite com financistas estrangeiros, minando a confiança dos doadores e causando contração econômica (Hanlon, 2018). De acordo com o Índice de Transformação Bertelsmann (2024), a qualidade da governação de Moçambique continua a deteriorar-se. A confiança do público nas instituições do Estado permanece baixa, com os cidadãos percebendo uma profunda divisão entre a elite dominante e a população em geral (Afrobarometer, 2023).
Extração de recursos, atores externos e padrões de exploração
Tanto a Serra Leoa como Moçambique ilustram a tese da " maldição dos recursos" (Auty, 1993). Na Serra Leoa, os campos de diamantes tornaram-se campos de batalha, financiando conflitos e aprofundando a desigualdade (Smillie et al., 2000). Os intervenientes estrangeiros exploraram a fraca governação, facilitando o contrabando e financiando senhores da guerra. No pós-guerra, os esforços para regular a mineração têm lutado contra a corrupção e a má aplicação.
As vastas reservas de recursos de Moçambique - gás natural, carvão, rubis e grafite - espelham este dilema. A descoberta do gás offshore prometia transformação, mas em vez disso intensificou o rent-seeking (Hall & Mulaudzi, 2019). As elites assinaram contratos opacos com empresas multinacionais, enquanto as comunidades locais viram poucos benefícios (Castel-Branco, 2014). Em Cabo Delgado, a exclusão das populações locais dos lucros do gás contribuiu para a insurgência em curso (Morier- Genoud, 2020). Assim, ambas as nações revelam como as economias extrativas, quando capturadas pelas elites, transformam a prosperidade potencial em instabilidade.
Primeiros sinais de instabilidade e alertas futuros
A descida da Serra Leoa à guerra civil foi gradual: colapso institucional, marginalização juvenil e desespero económico combinaram-se para criar rebelião (Richards, 1996). Em 1999, mais de 50.000 pessoas morreram e milhões foram deslocadas (Peters, 2011). Os paralelos com Moçambique hoje são impressionantes.
Em Moçambique, são visíveis várias bandeiras vermelhas. A insurgência do norte deslocou mais de um milhão de pessoas desde 2017 (ACNUR, 2024). As disputadas eleições nacionais em 2024 aumentaram a polarização (ACAPS, 2024). A crise econômica que se seguiu ao escândalo da dívida sobrecarregou o setor público (Zandamela, 2020). A pobreza e a desigualdade estão a aumentar (Banco Mundial, 2023). Sem intervenção, Moçambique arrisca-se a resvalar para uma crise multidimensional semelhante ao colapso da Serra Leoa na década de 1990.
Cautela e esperança: insights preventivos
A história não precisa de se repetir. Tirando lições da recuperação da Serra Leoa no pós-guerra, Moçambique poderia: 1. Investir na inclusão e educação dos jovens. Fortalecer programas vocacionais ligados às economias locais reais (Orre & Forquilha, 2023). 2. Garantir a transparência na gestão dos recursos. Adotar a divulgação pública integral dos contratos e reforçar a supervisão parlamentar (Hanlon, 2018). 3. Reformar as instituições de luta contra a corrupção. Garantir a independência do Ministério Público e a proteção dos denunciantes (Nuvunga, 2019). 4. Prosseguir a descentralização e a reconciliação. O TRC da Serra Leoa fornece um modelo para restabelecer a confiança a nível local (TRC, 2004). 5. Diversificar a economia. Reduzir a dependência das indústrias extrativas, investindo na agricultura e na pequena indústria (Castel-Branco, 2014).
Moçambique encontra-se numa encruzilhada. Se a corrupção, a desigualdade e a exclusão juvenil persistirem, o conflito pode se espalhar. No entanto, aprendendo com a experiência da Serra Leoa - tanto o seu colapso como a sua recuperação - Moçambique ainda pode evitar o desastre através da transparência, inclusão e renovação institucional.
Atenciosamente,
Samuel Joina Ngale
4 de Outubro, 2025
Resposta a Samuel Ngale
Caro Samuel,
Recebo com gratidão a tua carta escrita de Freetown ao fim dos teus trinta dias de missão. Na bela tradição epistolar africana - onde pensar é também cuidar - tu fizeste de Serra Leoa um espelho lúcido para Moçambique. Obrigado por pensares connosco, por confrontares as nossas feridas com a delicadeza da razão e a coragem do diagnóstico. O teu texto honra a filosofia como arma de lucidez (Cabral) e confirma uma evidência: quando África se pensa a si mesma, ela reabre as possibilidades do seu futuro.
Concordo com a substância do teu argumento. Em muitos contextos africanos, a nova morfologia do poder tem sido a predação oligárquica: captura do Estado, mercantilização das instituições, elitização dos recursos, desresponsabilização moral. O que descreves para Serra Leoa - clientelismo, colapso de serviços, financiarização do conflito pela economia extrativa - encontra ecos no nosso país. Em Moçambique, a guerra de dezasseis anos deixou um lastro de desconfiança e medo; e, há oito anos, a violência em Cabo Delgado revela a fragilidade de um pacto social que não chegou com justiça aos últimos. A descoberta de gás, rubis e carvão - que deveria ser bênção - converteu-se, pela má negociação e pela ausência de partilha, numa maldição de expectativas, alimento de ressentimentos e de violência difusa.
Dizes - e eu subscrevo - que não basta prever eticamente; é preciso prevenir eticamente. Esta é a diferença entre o moralista que comenta e o cidadão que constrói. Nos últimos meses, muitos de nós trabalhámos para que as manifestações encontrassem vias de saída não violentas e abrimos caminho para o diálogo integrado. Fomos parte desse esforço, porque a filosofia que defendemos não é contemplação distante: é ação orientada, é responsabilidade pública, é pedagogia de consensos. A ética da prevenção não substitui a justiça; ela prepara o terreno para que a justiça seja possível sem novas ruínas.
Quero dizer com toda a clareza: o povo falou entre outubro e março. E falou de pobreza e desigualdade, mas também de uma humilhação silenciosa - a de ver o país crescer sem si. Se fecharmos os ouvidos, se reduzirmos a sua dor à agitação de “grupos”, se nos refugiarmos em tecnicalidades procedimentais, repetiremos a trajetória que arrastou Serra Leoa ao desastre. Com um agravante: a guerra em Cabo Delgado expõe uma linha de fratura que, se negligenciada, pode fragmentar a comunidade política que com tanto custo edificámos. Perder Moçambique - não digo o território, mas o nós - seria perder a nossa herança mais preciosa.
Permite-me, então, reafirmar o núcleo do que venho defendendo: a Terceira Via como articulação de justiça social e liberdades públicas; a passagem da cracia da dominação à Reladolia - a autoridade entendida como serviço da relação; e uma filosofia da prevenção que antecipa o conflito, não para o reprimir, mas para o reconciliar na raiz. A isto junto três tarefas:
Política como arte de consenso. Não o consenso das unanimidades forçadas, mas aquele de que fala Kwasi Wiredu: deliberação que leva a sério o dissenso até produzir concordância suficiente para agir. A política é, antes de tudo, artesanato de escuta.
Comunidade como partilha. Como lembra Mogobe Ramose, o ubuntu não é slogan: é ontologia relacional. Ser moçambicano tem de significar participar numa economia da liberdade, onde bens, oportunidades e reconhecimento são distribuídos de modo a tornar o pertencimento desejável e racional.
Estadio de Machava. Retomo a metáfora que propus: a Machava como casa ampla onde toda a gente cabe. Este é o nosso lugar comum: sentar todos no mesmo pátio - províncias, religiões, partidos, juventudes, empresas, igrejas, sindicatos, universidade - e decidir em conjunto a gramática do porvir.
Nesta gramática, a partilha é princípio. Não há nação que se sustente sem partilha de bens materiais (renda dos recursos, terras, infraestruturas) e bens simbólicos (respeito, voz, memória). Ernest Renan lembrava que a nação é um plebiscito de todos os dias; mas não há plebiscito sem razões para dizer sim. Dar razões para o sim - eis a tarefa da política e das elites. É por isso que peço às elites políticas, económicas e intelectuais um compromisso inequívoco: trocar espertezas de curto prazo por sabedoria de longo prazo; substituir a retórica da vitória por pedagogia de pactos; aceitar a auditoria pública das nossas práticas e instituir mecanismos de transparência forte (contratos abertos, fiscalização parlamentar efetiva, proteção de denunciantes, cortes reais nos privilégios de captura). Sem partilha, não há coesão; sem coesão, não há Moçambique.
A juventude, tantas vezes transformada em estatística, deve tornar-se sujeito político. Frantz Fanon sonhava o “homem novo”; hoje eu peço o cidadão novo: formado na escola da responsabilidade, capaz de ligar liberdade a dever, criatividade a serviço. Que as universidades, os ateliês de filosofia, os centros cívicos e as comunidades religiosas sejam oficinas de prevenção: lugares onde a crítica se transforma em projeto e o protesto em proposta.
Sei que alguns perguntarão: onde está a esperança? Não confundo esperança com passividade. Com Ernst Bloch, sustento que o Princípio Esperança é obra e tarefa: esperança faz-se. A nossa começa hoje, com as consultas abertas que se anunciam. Que não sejam manobra, mas compromisso; não uma encenação para ganhar tempo, mas um tempo para ganhar sentido. Achille Mbembe advertiu-nos para as economias de morte que corroem o tecido social; a nossa resposta há de ser uma economia de vida: trabalho decente, agricultura fortalecida, pequena indústria, crédito produtivo, e sobretudo contratos de recursos que sejam inteligíveis ao cidadão e vantajosos para o bem comum.
Termino onde começaste: com Serra Leoa como aviso e convite. O aviso diz: um país pode quebrar quando os seus governantes já não ouvem e os seus cidadãos já não esperam. O convite diz: um país pode refazer-se quando os seus cidadãos e governantes escolhem a verdade, a partilha e o consenso. Peço - a todos - que escolhamos o segundo caminho. Em nome da nossa história, mas sobretudo em nome dos nossos filhos.
Recebe, caro Samuel, o meu abraço fraterno e a certeza de que a tua carta já faz parte desse trabalho de esperança que precisamos de multiplicar.
Maputo, 6 de Outubro de 2025
Severino Elias Ngoenha
Reply