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O QUALQUERISMO
A tentação da opinião e a promessa Áfricana de verdade
A libertação é um acto de cultura. Não
Basta expulsar o colono; é preciso fundar
A verdade própria de um povo.
Chamo qualquerismo à tentação - própria do nosso tempo - de tratar qualquer opinião como se fosse conhecimento sobre qualquer matéria. No futebol, o fenómeno é inofensivo: das bancadas ou da barraca, todos conhecem a táctica, a lista dos convocados e como bater penaltis. Mas nenhum clube sério entrega o balneário aos comentadores da bancada. Na vida pública, porém, a mesma tentação transformada em método corrói instituições, politicas e, sobretudo, a própria ideia de verdade.
A democratização do lugar de enunciação da palavra foi um avanço histórico. Quebrou monopólios de media e de elites que decidiram, durante décadas, o que era opinião pública. Ganhamos polifonia, pluralidade de olhares e instrumentos para corrigir narrativas oficiais - lembre-se como os vídeos de cidadãos desmentiram a primeira versão policial sobre a morte de George Flyod, que falava em incidente médico durante uma abordagem. A prova visual impediu que o cumunicado de tornasse a versão dos factos. Foi a democracia a respirar.

Mas a mesma abertura tem um reverso: quando a liberdade gera um mercado de opiniões indiferenciadas, o que é conquista torna-se risco. Se toda voz vale o mesmo, mesmo quando não há base factual ou competência, o espaço público converte-se num ruído que esconde mais do que revela. Quando tudo é opinião equiparável, nada é conhecimento vinculante, e o espaço público degrada-se num ruído que encobre o que foi apurado com método, prova e responsabilidade.
O termo italiano qualunquismo nasceu nos anos 1940 em torno do jornal L’Uomo Qualunque e de um movimento antipartidário, anti-establishment, que capitalizava o cansaço cívico e a desconfiança nas instituições. A sua gramática era populista: "o homem qualquer contra os de sempre". O nosso qualquerismo herda essa pulsão, mas amplifica-a nas plataformas digitais, onde a autoridade se mede por engajamento e não por competência.
Em Moçambique, o qualquerismo ganhou novos palcos. Para além do WhatsApp, do Instagram e do Facebook, as televisões abriram espaço a comentadores enciclopédicos. Qualqueristas que falam sobre tudo — economia, justiça, saúde, política internacional — muitas vezes sem conhecimento de causa.
O problema não é dar voz ao cidadão, mas transformar o improviso em referência. Quando se repete uma meia-verdade num programa televisivo ou numa live no Instagram, esta circula como evidência. Em vez de ajudar a formar uma consciência crítica, mina a opinião pública.

A crítica — condição da democracia — degenerou em criticismo fácil: denunciar sempre, propor nunca. O resultado é um pessimismo sistémico: os jovens que ouvem apenas discursos negativos perdem a fé no país, querem emigrar; transformam o rap e o teatro em eco de desesperança. Não é que o povo não pense — como já lembrava Maquiavel, o povo tem discernimento sistémico —, mas a repetição de vozes irresponsáveis contamina a esperança coletiva.
O qualquerismo não é apenas moçambicano. A história recente do continente mostra como o ruído informacional pode degradar sociedades:
Nigéria (2019–2023): rumores de WhatsApp alimentaram divisões étnicas e religiosas, enfraquecendo a confiança nas eleições.
Quénia (2007–2008): boatos em rádios locais e SMS incitaram ódio intercomunitário, levando a massacres.
África do Sul (2021): chamadas nas redes, baseadas em falsidades, desencadearam revoltas violentas após a prisão de Zuma.
Primaveras Árabes: movimentos que nasciam como esperança foram capturados por discursos sem projeto, transformando sonhos em guerras prolongadas.
E, na escala global, o caso Cambridge Analytica mostrou como corporações conseguem transformar dados e perfis em máquinas de manipulação política. Não era “qualquer opinião”: era engenharia de opinião, mentiras vendidas como verdades.
Estes exemplos revelam que o qualquerismo, ao ser instrumentalizado por elites políticas ou corporações internacionais, deixa de ser apenas ruído: transforma-se em arma de manipulação massiva, capaz de incendiar comunidades e corroer a coesão nacional.
Hoje, no Sahel, assistimos a lutas profundas pela redefinição da soberania. Forças ocidentais apresentam estas mudanças como manipulação russa, turca ou chinesa, ocultando o essencial: povos que recusam a continuação de modelos coloniais disfarçados. A desinformação procura reduzir processos complexos de autodeterminação a meros jogos de influência externa.
Mas emergiu um neo-panafricanismo, organizado e militante, que recusa essa leitura. O grupo Mansah - guiado pelo ex jornalista da RFI, Alain Foka- que junta intelectuais de diferentes países e horizontes, propõem uma comunicação africana alternativa, crítica e emancipadora. Nomes como Nathalie Yamb e Kémi Séba são apelidados de radicais pela imprensa europeia, mas o que reclamam é a independência do continente e a construção de uma narrativa própria.
Esta dialética comunicacional e de narrativas ainda não chegou com força a Moçambique, mas é fundamental compreendê-la: sem voz própria, a África continua a ser narrada pelos outros. E ser narrado pelos outros é já estar alienado.

A filosofia sempre distinguiu dóxa (opinião), epistéme (conhecimento) e techne (saber - fazer).
Não para hierarquizar pessoas, mas modos de acesso à realidade. Opiniões (doxa) podem ser valiosas;, mas só se tornam conhecimento (epistéme) quando passam por critérios de justificação, prova e crítica intersubjectiva.
Platão desconfiava da cidade governada por aparências. Aristóteles lembrava a importância da phronesis, a prudência prática. Hannah Arendt ensinou que a política não pode legislar contra factos; a verdade factual é condição de convivência. Habermas mostrou que a democracia precisa de argumentação racional, não de ruído. Foucault alertou para os regimes de verdade: cada sociedade decide quem pode falar, e o poder legitima certas narrativas.
No Moçambique de hoje, o que falta é a ética da responsabilidade na palavra pública. Não se trata de calar vozes, mas de restaurar critérios: Quem fala deve reconhecer os limites do que sabe. Quem comunica deve ter consciência de que forma consciências. Quem ouve deve aprender a distinguir entre informação, rumor e manipulação.
Sem essa ética, os meios de comunicação tornam-se — como avisava a Escola de Frankfurt — instrumentos de alienação em vez de libertação.
Em África, isso significa compreender que as grandes agências internacionais — BBC, RFI, Al Jazeera, RTP — não são neutras. Exercem soft power, moldam imaginários, decidem quais revoluções são “legítimas” e quais são “radicais”. O nosso desafio é fundar regimes de verdade africanos, que expressem a nossa experiência, e não apenas ecos do olhar estrangeiro.

O panafricanismo histórico (Nkrumah, Padmore, Dubois, Diop) já foi esta tentativa de dar à África uma voz própria. A CONCP (Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas) foi, nesse sentido, um exemplo luminoso: uniu as lutas de cinco países em torno de um objectivo comum: a construção de patrias humanas onde, cada pessoa (homem, mulher, criança) seria um valor!
Hoje, o desafio repete-se no campo das narrativas e da comunicação. Construir pátrias humanas significa -mais do que política- a independência da palavra, responsabilidade da crítica, ética da comunicação. Amílcar Cabral lembrava que “a luta é, antes de mais nada, um acto de cultura”. Hoje podemos dizer que a luta é, antes de mais nada, um acto de comunicação responsável.
As “pátrias humanas” não são apenas estados soberanos; são comunidades de sentido, capazes de distinguir verdade de mentira, esperança de pessimismo, crítica construtiva de ruído. O Ubuntu africano (John Mbiti) recorda: eu sou porque nós somos. A nossa comunicação deve ser expressão desse laço, não do isolamento individualista do qualquerismo.
Não (me) proponho silenciar ninguém. Proponho tomar a sério a voz pública. Ser povo é ter voz e voto; não é pretender, por isso, ser médico, engenheiro, constitucionalista e macroeconomista ao mesmo tempo. As democracias maduras combinam a soberania popular com instituições de competência - e com deliberação que transforma opiniões em decisões responsáveis. O que mata a democracia não é crítica informada às elites; é o igualitarismo cognitivo de fachada que declara todas as opiniões equivalentes antes do trabalho de examinar razões e provas
O qualquerismo é uma tentação das épocas cansadas: faz crer que basta falar para saber. Mas o nosso futuro não pode assentar no ruído. Ele depende da responsabilidade da palavra: comunicar para construir, não apenas para denunciar.
A África, apesar de todas as feridas, é promessa de um mundo melhor. Se sucumbirmos à alienação comunicacional, seremos apenas ecos de narrativas alheias. Mas se assumirmos a ética da palavra, poderemos fundar pátrias humanas — pátrias de verdade, justiça e esperança.

O problema do qualquerismo não é dar voz ao povo; é confundir barulho com sabedoria. O povo pensa, discerne e age — mas precisa de um espaço público em que o verdadeiro possa emergir do falso. Isso exige humildade epistémica: a coragem de dizer “não sei”, a abertura ao contraditório e o respeito pela perícia.
A democracia moçambicana precisa menos de críticas fáceis e mais de propostas construtivas, menos de desespero e mais de esperança partilhada. Se tudo for denúncia, cria-se uma sociedade incapaz de acreditar em si mesma. Se cultivarmos a responsabilidade na palavra, a crítica volta a ser motor de transformação e não apenas sintoma de angústia.
Não nos basta sobreviver ao barulho do qualquerismo: precisamos transformá-lo em voz própria, colectiva e libertadora. A verdadeira independência, hoje, passa pela libertação da palavra. Só assim a África cumprirá a sua vocação de promessa universal.
O qualquerismo é uma tentação sedutora: toda voz conta, todo palpite vale. Mas a sua consequência é devastadora: a equivalência entre verdade e rumor. Em Moçambique, em África e no mundo, precisamos da coragem de dizer que nem toda opinião é saber, que comunicar não é só falar, mas responder por aquilo que se diz.
Caso contrário, corremos o risco de transformar o espaço público num coro de ecos que, em vez de fortalecer a democracia, a dissolve na alienação e no pessimismo. O antídoto não é o silêncio, mas uma palavra responsável, ética e construtiva — capaz de reerguer a confiança no país, no continente e na nossa vida comum.
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