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Telos e Kairós: Para uma Filosofia Africana da História no Momento Decisivo

Este artigo é mais do que um ensaio, é um manifesto filosófico para o momento propício que vivemos.

Sumário

Pela primeira vez desde a descolonização, o Ocidente encontra-se em crise e o sistema-mundo redesenha-se diante dos nossos olhos. A juventude africana, as lideranças emergentes e as comunidades de base percebem que não basta reagir às forças externas: é preciso construir, desde dentro, um projeto de unidade, emancipação e dignidade.

Telos e Kairós: Para uma Filosofia Africana da História no Momento Decisivo propõe uma reflexão sobre o lugar da África na História universal, articulando sofrimento, glória e promessa. Ao fazê-lo, reivindica uma filosofia africana da História capaz de transformar destino em projeto, utopia em programa, fragmentação em força criadora. É um texto para ser lido como editorial, manifesto e guia filosófico - uma chamada ao pensamento e à ação no kairos presente.

Da Teologia à Filosofia da História

A tradição filosófica da História tem as suas raízes na Teologia da História, como em Santo Agostinho (De civitate Dei, c. 426 d.C.), onde o sentido do tempo humano era ordenado pela Providência divina. Com a modernidade, o Renascimento e o Iluminismo, este quadro foi secularizado: o progresso substituiu a providência, a racionalidade substituiu o desígnio divino. Hegel cristalizou esta viragem ao fundar uma filosofia da História que via o processo histórico como realização do Espírito no tempo (Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, 1837).

Santo Agostinho de Hipona

Todavia, essa filosofia universal constituiu-se sobre uma geopolítica implícita: a Europa como sujeito, os outros continentes como espaços passivos ou “sem História”. O africano foi colocado fora do mapa do progresso, como humanidade incompleta ou “pré-histórica”.

A Questão Africana na Filosofia da História

Pensar uma filosofia africana da História não é entrar “na” história universal de Hegel; é reverter o olhar. É reconhecer que os africanos sempre foram sujeitos históricos, mas desqualificados por um discurso que os relegou a objetos de estudo. A filosofia africana da História é, assim, um ato de libertação epistémica: pensar a História a partir do próprio continente, assumindo sua pluralidade, dor e promessa.

As Três Áfricas

A África do Sofrimento

A escravatura árabe (séculos VII-XIX), a escravatura atlântica (séculos XV-XIX), o colonialismo do século XIX e as ditaduras pós-independência formam um arco de sofrimento que persiste hoje nas travessias do Mediterrâneo, na fome, nas guerras e nas exclusões globais. Esta África sofreu um processo sistemático de castração cultural, redução de línguas a dialetos, crenças a superstições, cultura a folclore.

Mas esta África não é apenas vítima; é também lugar de resistência e de afirmação. A liberdade não é só negativa - sair das garras do outro - mas positiva: afirmar-se como humanidade plena.

A África da Glória

Ao lado do sofrimento, a memória das grandes civilizações africanas (Egito Antigo, Tombuctu, Grande Zimbábue) e a obra de autores como Cheikh Anta Diop (Civilisation ou barbarie, 1981), Amatunde revelam uma África criadora de mundos. Esta glória não é nostalgia, mas recurso ativo para reconstruir autoestima e projetar o futuro.

A África da Promessa

Da negritude ao panafricanismo, de W. E. B. Du Bois (The Souls of Black Folk, 1903) a Nkrumah (Consciencism: Philosophy and Ideology for De - Colonization, 1964), de Amílcar Cabral (Unité et lutte, 1975) a Julius Nyerere, emergiu a promessa de criar pátrias humanas - sociedades onde cada pessoa seja um valor em si mesma. A filosofia africana da História orienta-se por esse telos: paz, progresso e felicidade dos povos.

Telos Africano: a Unidade como Condição de Possibilidade

A unidade continental não é apenas um projeto político; é condição teleológica. Para realizar as pátrias humanas é preciso um continente que fale a uma só voz, que afrocentre a economia, que se emancipe das instituições e dos poderes ocidentais.

Porém, sempre que tentámos avançar - seja monetária, seja politicamente -, líderes visionários foram depostos ou assassinados: Patrice Lumumba (1961), Thomas Sankara (1987), Samora Machel (1986), Muammar Kadhafi (2011). A sucessão de golpes e assassinatos enfraqueceu o espírito panafricanista.

Mesmo assim, a consciência da necessidade de unidade hoje é consensual: está nas lideranças, nas elites académicas, nas corporações e nas comunidades. Uma nova vaga neopanafricanista (Níger, Burkina Faso, Mali) indica um despertar que reconhece na unidade o caminho para o futuro.

A Crise do Ocidente e o Kairos Africano

Enquanto o telos africano exige unidade, o mundo entra em mutação. Oswald Spengler, em Der Untergang des Abendlandes (A Decadência do Ocidente, 1918-1922), já intuía que a hegemonia europeia tinha um tempo. Nietzsche percebera a crise de valores no século XIX (Zur Genealogie der Moral, 1887). Mas após a Segunda Guerra Mundial, apesar das proclamações de direitos humanos (Declaração Universal, 1948) e do “nunca mais isto”, o Ocidente manteve colonialismo direto ou indireto, alimentando-se da dependência africana.

Hoje, porém, assiste-se a uma inflexão inédita:

  • A hegemonia ocidental é contestada por potências emergentes, sobretudo asiáticas;

  • O sistema-mundo reorganiza-se (BRICS, novas alianças);

  • A crise de valores ocidentais torna-se patente (fragmentação EUA-Europa, incapacidade de mediação internacional, populismos internos).

Los Angeles Protestors

Este contexto não é apenas declínio do Ocidente; é oportunidade africana. Aqui entra o conceito de kairos: o momento oportuno, o instante decisivo onde a ação transforma a história.

O Momento Kairótico: A Oportunidade Africana

Na Grécia clássica, kairos designava o “tempo certo”, a “abertura” no fluxo cronológico (chronos) para a ação decisiva (Píndaro, Odes, séc. V a.C.). Não é o tempo quantitativo, mas qualitativo, a ocasião justa. No cristianismo primitivo, kairos assume uma densidade escatológica: é o “tempo favorável” da salvação (Paulo, 2 Coríntios 6:2).

life is a succession of choices, what is yours?

O kairos africano, ao contrário do grego e do cristão, não é apenas individual ou espiritual; é histórico e coletivo. É o momento em que estruturas globais se reconfiguram, abrindo espaço para que um continente inteiro se torne sujeito. Enquanto o telos africano é a pátria humana, o kairos é este instante propício de redesenho mundial que pede ação coordenada.

Oportunidade Estratégica

Nunca como agora o mundo redesenha as suas cartas geopolíticas. O Ocidente divide-se, o poder desloca-se, as alianças mudam. Este é o momento para a África passar de objeto a sujeito, de periferia a centro de decisão.

It's always about the Queen

Mas é preciso não repetir erros: não se trata apenas de criar “Estados Unidos da África”, mas de construir complementaridades económicas (como pensou Mamadou Dia, L’Afrique: le prix de la liberté, 1962), culturais e institucionais a partir do interior do continente. Trata-se de pensar a África desde dentro, sem reproduzir valores neocoloniais ou imperialistas.

Se o telos africano é a pátria humana, o kairos é este momento propício, pungente, em que juventude, política e comunidades despertam. O desafio é ter energia, audácia e determinação para ocupar o espaço que se abre.

Telos e Kairos na Filosofia Africana da História

A Filosofia Africana da História é mais do que uma crítica; é um projeto. Reconhece o sofrimento, resgata a glória e orienta-se pela promessa. O seu telos é a unidade emancipadora; o seu kairos é este momento histórico.

Trata-se de realizar a África da promessa, não como retórica, mas como estrutura material, cultural e política que devolva ao africano o estatuto de sujeito histórico universal. Telos sem kairos é utopia; kairos sem telos é dispersão. Ao articular ambos, a Filosofia Africana da História torna-se uma filosofia da ação - uma filosofia que transforma destino em projeto, sofrimento em força, marginalidade em centralidade.

Um Programa Filosófico Condensado para a África do Século XXI

📸 @mariogogh

A África encontra-se diante de um imperativo histórico que combina telos e kairos: ou assume o protagonismo da sua própria história ou permanecerá refém das lógicas externas. O programa africano do século XXI deve partir de um núcleo simples e radical: unidade estratégica gradual, economia afrocentrada, autonomia epistémica e revolução cultural contemporânea. Isto não significa um salto utópico para “Estados Unidos da África”, mas a construção paciente de complementaridades regionais, infraestruturas comuns, moedas digitais africanas, centros de pensamento próprio e redes culturais pan-africanas. Ao mesmo tempo, é urgente transformar a energia da juventude em participação política e liderança comunitária, e colocar a África como actor proativo no novo sistema multipolar - não apenas reagindo, mas redesenhando as alianças globais, mediando conflitos e propondo soluções próprias.

Este programa condensado revela, porém, os desafios profundos que o continente enfrenta. Ele exige lideranças éticas e visionárias, libertação da dependência financeira e tecnológica, combate ao neocolonialismo simbólico, reconstrução das soberanias alimentares e ambientais, e uma nova filosofia da responsabilidade coletiva. O telos africano - pátrias humanas, paz, progresso e felicidade dos povos - só se realizará se, no kairos presente, houver audácia suficiente para transformar fragmentação em coesão, sofrimento em força criadora, diversidade em unidade estratégica. Trata-se menos de um plano fechado do que de um horizonte filosófico de ação: um convite a fazer da África um sujeito histórico capaz de pensar, decidir e construir o seu próprio futuro.

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