Tradernismo e Filosofia em Comum

Ensaio em conversa com José Castiano - sobre a Terra, o Tempo e a Justiça

Caro Severino, 

Obrigado por conceberes e fazeres da filosofia não somente a
(1) tua paixão e modelo de vida, nem limitada apenas, por uma vida inteira,
(2) dedicada ao seu ensino e formação nas escolas e universidades, mas sobretudo fazeres
(3) toda a sociedade moçambicana, africana e do mundo testemunhos contemporâneos das tuas “lucubrações” (como gostas de dizer) e angústias públicas. 

No teu esforço do “pensar em comum”, escolheste o caminho mais difícil; que é  o do expores os valores cardinais que defendes (Liberdade primeiro e Justiça), jamais em forma de certezas, senão de angústias, temores, dilemas, enfim de forma mais aporética possível. E que não tens o problema de, qual Diógenes de Laércio, fazer tudo em praça pública, seja por escrito, em grupos pequenos ou podcasteando. 

Orgulho intenso e profundo de sermos teus conterrâneos, mas sobretudo contemporâneos! Alguns, infelizmente, andam distraídos quanto a esta tua forma peculiar de estar presente no nosso país e tempos. 

Feliz Aniversário e muitas felicidades!

José P. Castiano

I. Agradecimento e ponto de partida

Agradeço, de coração e de razão, o texto generoso do Castiano. Nele reconheço um gesto duplo: o reconhecimento do professor -  que ensina em escolas e universidades - e o apelo ao filósofo público - que tenta pensar com o seu povo, em praça aberta, no risco e na interpelação. Aceito ambos, com a devida precisão: a minha concepção de filosofia não se resume ao ensino da sua  história; ela procura ser instrumento para pensar o nosso tempo, o nosso espaço e o nosso mundo, e procura sê-lo vivendo o que pensa, mesmo ao preço de mal-entendidos e dissabores que toda parrhesía (a franqueza corajosa) costuma impôr a quem fala em público.

Se Diógenes de Sínope ousou interpelar Alexandre, foi porque compreendeu que a verdade filosófica não é ornamento de corte, mas vida em acto. O mesmo se diga de Sócrates, dos estóicos e dos epicuristas: filosofar foi - e deve voltar a ser - maneira de ser, não pedantismo desligado da vida. Em linguagem contemporânea: a filosofia é uma prática que orienta critérios de justiça, modos de convivência e formas de coragem cívica.

II. Filosofia e genealogias: a lição dos templos

Castiano evoca a dimensão pública da filosofia na tradição greco-romana. Acrescento, com a devida cautela historiográfica, uma pergunta fecunda: onde se formaram muitos dos motivos que a Grécia sistematizou? Autores africanos - de Cheikh Anta Diop a debates posteriores (T. Obenga, George G.M. James, Amatunde...) - lembraram o papel pedagógico dos templ egípcios, onde ética, cosmologia e política se entrelaçavam sob o princípio de Ma’at (ordem, verdade, justiça). Seja qual for a posição no debate, a intuição é válida para nós: antes de ser um sistema, a filosofia é uma pedagogia pública de justiça, um exercício de formação do governante e do povo. Maquiavel, séculos depois, perguntará pelo príncipe justo; nós, hoje, perguntamos pelo cidadão justo - e por instituições que tornem a justiça hábito, não exceção.

III. Conterrâneos: da terra como herança à terra como missão

Castiano chama-nos “conterrâneos” e “contemporâneos”. Tomo a sério ambos os termos e começo pela terra. Em sentido banal, conterrâneos são os que nasceram na mesma língua ou no mesmo lugar. Em sentido forte - aquele que nos interessa - conterrâneos são os que compartilham uma história de opressão e de libertação que transforma a terra em pátria. Não somos conterrâneos porque falamos igual; somos conterrâneos porque lutámos e lutamos por igual dignidade sobre o mesmo chão histórico.

Aqui, a distinção de Isaiah Berlin entre liberdade negativa e positiva, assim como a distinção cabraliana entre programa fraco e programa forte, dão-nos a gramática:

  • Liberdade negativa / programa fraco: abolir a dominação (derrubar as formas de opressão).

  • Liberdade positiva / programa forte: construir as condições de uma vida livre (instituições justas, hábitos cívicos, economia ao serviço do comum).

Se a terra fosse apenas herança, bastaria guardá-la. Mas a nossa terra - tornada pátria pela história - é missão: fazer com que ninguém precise fugir para florescer; fazer com que “os nossos” incluam todos os que partilham a vida comum, mesmo sem a mesma língua, a mesma cor ou a mesma origem. Terra é tarefa: organizar o espaço político, económico e cultural para que a liberdade positiva se torne experiência diária - escola, hospital, tribunal, mercado e praça a funcionarem como meios da justiça e não como obstáculos a ela.

IV. Contemporâneos: o desafio da temporalidade comum

“Contemporâneos” remete ao tempo. A física contemporânea (como tem popularizado, por exemplo, Carlo Rovelli) questiona a substantividade do tempo único e absoluto; a filosofia descreveu camadas - tradição, modernidade, pós-modernidade, trans-modernidade. Em Moçambique, essas camadas coexistem: aldeias em regime de tradição viva, cidades em modernidade desigual, elites em pós-modernidade consumista. O problema, então, não é “passar” de uma etapa a outra, mas co-habitar temporalidades divergentes sem lascar o corpo político.

Daqui nasce a exigência de uma temporalidade comum: um acordo prático sobre o que não pode ser adiado (alimentação, saúde, educação básica, justiça elementar), o que pode ser progressivo (infraestruturas complexas), e o que deve ser plural (formas de vida, expressões culturais, economias locais). Uma política do tempo que não ponha o “novo” contra o “antigo”, mas articule encaminhamento - onde tradição e inovação cooperam.

V. Tradernismo: conceito, ética e programa

Chamei a isto, noutros textos Tradernismo (A impossibilidade do momento moçambicano): a arte política de trançar tradição e modernidade para produzir um comum que não humilhe nem paralise. O Tradernismo é a tradução hermenêutica e intra-moçambicana/africana da filosofia da interculturalidade; um nome nosso para o diálogo intercultural interno que precisamos instituir como método de governo e cultura. Não é ecletismo confuso; é critério:

Princípio de continuidade crítica: conservar o que maximiza dignidade (solidariedade comunitária, artes de convivência, saberes agrários); reformar o que a fere (patriarcados violentos, clientelismos, superstições que negam direitos).

Princípio de inovação enraizada: a tecnologia, a administração e o mercado são instrumentos; devem ser avaliados pelo rendimento social (educação, saúde, trabalho digno, justiça célere).

Princípio de coautoria: políticas públicas desenhadas com participação vinculante - não apenas consulta - das comunidades afectadas.

VI. Liberdade e Justiça: critério do caminho

“Liberdade primeiro, Justiça sempre” (como defendemos juntos no Menifesto da Terceira Via) não é slogan; é bússola. A liberdade, sem justiça, vira privilégio; a justiça, sem liberdade, vira tutela. O Tradernismo mede-se pelo par indissociável: o que amplia liberdades efectivas para os últimos e protege direitos para todos?; o que redistribui cargas e oportunidades sem esmagar a iniciativa? O nosso debate precisa deslocar-se dos rótulos (modernos vs. tradicionais) para critérios (o que produz dignidade medível na vida concreta?).

VII. Conterrâneos e contemporâneos: comunidade política como obra

Volto aos termos do Castiano. Ser conterrâneos é converter a terra em pátria - não como herança, mas como obra comum. Ser contemporâneos é pactuar uma temporalidade compartilhada - não para uniformizar vidas, mas para impedir que a pluralidade se quebre em guetos. Aqui reside a missão da filosofia pública: descrever, criticar e ordenar meios para fins; transformar angústias em critérios e dilemas em decisões responsáveis.

VIII. Agradecimento que se faz desafio (filosofia em comum)

Agradeço, Castiano, a delicadeza e a coragem do teu texto - e, sobretudo, agradeço-te por filosofar em comum comigo nesta aventura que dura há mais de três décadas. Lamento, com a mesma franqueza, que não tenhamos conseguido trazer mais pessoas, apesar de tantos terem contribuído, cada um à sua maneira. O desafio, portanto, é redobrado:

Prosseguir a filosofia em comum, ampliando o círculo com jovens professores e a nova geração; se o fizermos, podemos consolidar uma maneira moçambicana de fazer pensamento e de estar no mundo (é o que chamamos a escola moçambicana de filosofia);

Entrar no barco da filosofia - cada vez mais gente - não para fazer carreira, mas para assumir a missão de;

  1. Transformar a terra em pátria - pela liberdade positiva, programa forte da construção;

  2. Transformar a cronologia em convivência - instituir uma temporalidade comum que não fragmente;

  3. Fazer do Tradernismo a nossa gramática intercultural - tradição + modernidade como método de governo, educação e economia, isto é, a filosofia intercultural em versão moçambicana.

Que este agradecimento seja, pois, um convite: prolongarmos a reflexão - não só nós dois - mas com outros que queiram co-fundar essa maneira moçambicana de fazer pensamento: uma filosofia intercultural, exigente, pública e comprometida com a dignidade concreta. Conterrâneos por missão; contemporâneos por responsabilidade. 

Liberdade primeiro;
Justiça sempre!

Severino Ngoenha

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