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O Fórum da Verdade e da Memória e o Sonho do Estado da Machava
Correspondência entre Ivo Garrido e Severino Elias Ngoenha
Meu caro Severino,
Tenho acompanhado com interesse a tua correspondência com o Samuel Ngale.
Uma pergunta: como se materializaria e o que seria, no concreto, o Fórum da Verdade e da Memória?
Meu caro Ivo,
A tua pergunta é clara e necessária: como se materializaria e o que seria, no concreto, o Fórum da Verdade e da Memória?
Há, a meu ver, duas maneiras de responder a esta questão.
A primeira seria técnica, e consistiria em descrever organogramas, estruturas, metodologias, comissões, comunidades, igrejas ou universidades encarregadas de levar o processo adiante.
Essa seria uma resposta de engenharia política, legítima e até indispensável em certos momentos.
Mas há uma segunda maneira, que é filosófica e fundacional: deslocar a pergunta do como para o porquê e o para quê - isto é, passar da mecânica à razão moral do processo.
É essa via que escolho. Não para fugir da questão, mas para colocar o Fórum da Verdade e da Memória dentro da história espiritual e política de Moçambique, onde ele adquire o seu verdadeiro sentido.
Entre as figuras que mais admiras, para além de Samora Machel, está Jorge Rebelo - e com razão. Rebelo não foi apenas o poeta da revolução, mas a consciência moral da libertação. Em 1972, quando as armas ainda falavam mais alto que as palavras, ele escreveu o texto que continua a ser bússola e advertência:
Não basta que seja pura e justa a nossa causas; é necessário que a pureza e a justiça existam dentro de nós...
Anos depois, num outro poema, Rebelo pergunta:
Onde nos perdemos?
Talvez a resposta a esta segunda pergunta já estivesse inscrita na primeira. Perdemos-nos quando deixámos que as causas se tornassem mais importantes que a pureza interior. Perdemos-nos quando os ódios antigos - raciais, tribais, religiosos - e a vontade de acumulação - as bolsas vazias que queriam encher-se - começaram a substituir o sonho partilhado pela cobiça individual. Foi aí que Moçambique, pouco a pouco, trocou a fraternidade pela desconfiança, a solidariedade pela suspeita, o ideal pela posse.
Não se trata de procurar culpados. Há causas internas e há causas externas. Há a Guerra Fria, que dividiu o mundo e penetrou as nossas fronteiras. Há a guerra (dita) civil que impôs compromissos forçados e alimentou dependências. Mas há também uma parte de nós que não pode ser escondida: mudámo-nos, aceitámos a derrota moral, e, sem perceber, tornámo-nos semelhantes ao que combatíamos. O resultado é um país de costas voltadas: o velho ódio reaparece em novas formas, e o desejo de encher bolsas tornou-se, para muitos, a única ideologia possível.
Hoje, o tribalismo, o racismo e o regionalismo - alimentados por uma economia predatória - substituíram a ideia de nação comum. Os jovens, desiludidos, partem. Não são deportados, como os nossos antepassados; fogem porque já não acreditam. As suas viagens para Portugal, para a África do Sul ou para onde houver futuro são a prova mais triste de que perdemos o crédito em nós mesmos.
É a partir deste presente de fratura que devemos voltar ao passado - não para julgar, mas para compreender. O passado não é tribunal, é espelho. Temos de o revisitar com coragem, para descobrir onde o fio se partiu, e sobretudo para reencontrar os momentos em que fomos capazes de ser um só corpo, uma só voz. Revisitar não é nostalgia; é método de cura.
Aqui reencontro o sentido do Fórum da Verdade e da Memória. Ele não é uma instância de acusação, mas um check-up nacional, como dirias tu, como médico atento às feridas do corpo. Precisamos fazer o inventário das dores e também das cicatrizes: as visíveis e as ocultas. Saber onde dói é o primeiro passo para curar. E a cicatriz que pode curar as feridas de ontem chama-se reatar o contrato social moçambicano, renovar o pacto da independência que Samora Machel proclamou em 1975:
Em vosso nome, a FRELIMO proclama, a independência total e completa de Moçambique.
Essas palavras continham uma promessa: libertar os mortos, os vivos e os que ainda haviam de nascer. E é essa promessa que temos de reatar.
O que nos falta não é uma nova independência, mas uma nova unidade moral. Precisamos de reencontrar o que simbolicamente chamo de Estado da Machava. Não falo do estádio físico nem do acto histórico, mas do seu significado profundo: o lugar do reencontro. A Machava foi o espaço onde os moçambicanos - vindos de diferentes escravidões, exílios e lutas - se reconheceram como povo. É essa imagem que deve guiar-nos agora: voltar ao lugar do encontro para olhar uns nos olhos dos outros e perguntar, com Rebelo, onde nos perdemos - e com coragem responder: como queremos reencontrar-nos?
O Estado da Machava, como metáfora, representa o que precisamos de recriar hoje: um espaço público e simbólico, livre de fardas ideológicas, de ressentimentos e de pretensões históricas. Um espaço onde cada moçambicano - político, religioso, jovem, camponês, académico - possa dizer a sua verdade e escutar a verdade do outro. Um espaço onde não se procure vencedores ou vencidos, mas consenso. Porque, como escrevo muitas vezes, a vida política das nações não se faz com verdades absolutas, mas com consensos duradouros.
O consenso não é fraqueza: é a forma mais madura da força. Ele exige admitir a pluralidade, reconhecer as diferenças e acreditar que a harmonia é feita de instrumentos diversos. Assim é uma sinfonia: cada voz distinta, mas tocando em conjunto.
A verdadeira reconciliação não é regressar ao passado, mas propor um futuro. E o futuro só se constrói quando há presente digno. O que cura a nação não é a memória sozinha, mas a capacidade de oferecer aos jovens um presente que mereça o nome de futuro. Se os jovens fogem, é porque o país deixou de lhes oferecer horizonte. Reconciliação significa devolver-lhes o direito de acreditar.
Por isso, o desafio que te lanço, meu caro Ivo, e que lanço a todos, é o de fazer deste tempo - o dos 50 anos de independência - um novo kairos, um New Deal moçambicano. Reatar a história interrompida. Refazer o pacto social. Redescobrir o sentido de sermos senhores do nosso destino. E fazê-lo juntos.
As modalidades podem ter muitos nomes - Fórum da Verdade e da Memória, Diálogo Intergeracional, Estado da Machava - mas o essencial é o espírito: o de reconstruir, com esperança activa, o laço que nos fez nascer como nação.
Não se trata de copiar fórmulas. Trata-se de ousar inventar o nosso próprio caminho, guiados pela memória, pela justiça e pela imaginação profética. O diálogo nacional que agora se abre é uma oportunidade histórica: um espaço ainda incerto, mas fecundo, onde todos são chamados a falar e a propor. É nele que se joga o destino moral da nação.
Mais importante do que saber se o processo é perfeito, é participar com verdade. Não há reconciliação sem presença. A cada moçambicano cabe a tarefa de trazer a sua palavra, o seu problema, a sua proposta. O que hoje parece frágil pode tornar-se, se o tomarmos a sério, o início de uma nova era moral.
O Fórum da Verdade e da Memória, de que falamos, não é tanto uma instituição administrativa, mas um processo moral e participativo que deve manifestar-se nos lugares de encontro do povo - escolas, igrejas, comunidades, universidades - como expressão viva do nosso pacto de escuta e reconstrução. O essencial não é o edifício, é o espírito. O Fórum existe cada vez que um moçambicano fala e é escutado com verdade.
Ernst Bloch lembrava-nos que “a esperança é o mais humano dos movimentos, porque nasce do inacabado.” É essa esperança que temos de construir. E Amílcar Cabral dizia que “a independência é um acto de cultura” - quer dizer, é um ato de criação. Temos de criar de novo o país, mas agora com consciência do passado e com os olhos postos num futuro partilhado.
Não tenho respostas definitivas. Nenhum de nós as tem. Mas acredito que o debate que estamos a fazer - este diálogo entre gerações e consciências - pode ser o fermento de novas propostas e de uma reconciliação verdadeira. A verdadeira pátria será aquela em que ninguém precise de partir para encontrar futuro, e em que o perdão se traduza em possibilidade concreta de vida digna.
O que está em causa não é apenas curar as feridas do passado, mas restaurar a confiança no amanhã.
Esse é o verdadeiro remédio, a verdadeira cicatriz.
E ela tem um nome simples, mas exigente: esperança construída juntos.
Com estima fraterna,
Severino Elias Ngoenha
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